Haveria no mundo alguém completamente feliz? Foram os mensageiros do Tsar procurar essa pessoa, mas... “Por mais que procurassem, não conseguiam encontrar alguém totalmente satisfeito – havia aqueles que eram ricos, porém doentes, saudáveis, mas pobres, havia outros saudáveis e ricos, mas com uma esposa má, ou filhos ruins; enfim, todos queixavam-se de alguma coisa.” Bem assim é a vida nas curtas histórias de Liev Tolstói (1828-1910), um escritor que foi pacifista e pedagogo, não-senão-após muitos revezes, com fortes traços de sabedoria popular, os bons sentimentos e a mundividência das gentes simples. Eis, então, que o próprio filho do Tsar ouviu falar um homem, do interior de sua pequena cabana, ao final da tarde: “Bem, graças a Deus, trabalhei bastante, comi bem, e agora vou dormir. O que mais posso querer?”
Perguntas assim — que nos acompanham estrada afora a respeito da existência, da humildade que alivia, do orgulho que pesa, do encontro com outras pessoas que nos levam a nós mesmos, os filhos ingratos, mercadores cobiçosos, engenheiros, engenhosos, acadêmicos trôpegos, camponeses inteligentes ou ingênuos —, aqui e ali, pontuam A PEDRA NA PRAÇA e outras histórias de Liev Tolstói (Rovelle, 2012), com seleção de textos e adaptação de Ana Sofia e Tatiana Mariz. Foi CárcamO quem ilustrou o livro com uma aquarela sóbria, mas com luminosos contrastes que se obtém a partir do escuro sépia; CárcamO atento a uma das frases do célebre escritor russo: “Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia.”
O NARIZ, texto de Nikolai Gógol (1809-1852), traduzido e adaptado por Rubens Figueiredo, ilustrações de Guenádi Spirin (Cosac Naify, 2008), nos leva a conhecer e respirar os ares de São Petersburgo. Ao acordar e cortar o pão, um barbeiro, lá dentro, encontra um nariz e não haverá jeito de desfazer-se da incômoda surpresa, abandonando o achado pelas ruas, tão vigiadas por conhecidos e policiais... Em outro ponto da cidade, o Major Kovalióv desperta e desespera-se ao ver seu rosto refletido no espelho, claro, sem o nariz. Entretanto, vestindo um rico uniforme com bordados de ouro, gola alta, botas até os joelhos e uma espada à cintura, o nariz por aí circula como um importante Conselheiro de Estado. O que pode um nariz entrando ou saindo dos palácios de ricas salas e luxuosos departamentos, metendo-se em negócios onde não fora chamado, sabendo, ou não, qual é o seu lugar? Com um humor bastante político, intrigante, articulado, grotesco, científico, medicinal, aprendemos que muitas vezes um rosto fica bem pior com seu próprio nariz...
Publicado em 1829, A GALINHA PRETA, ou OS HABITANTES DO SUBTERRÂNEO, de Antóni Pogorélski, é considerado o primeiro livro a respeito da infância na literatura russa e chegou ao Brasil com tradução de Klara Gourianova e ilustrações de Laurent Cardon (Edições SM, 2010). A narrativa se abre sobre as pobres ruas revestidas com tábuas podres de São Petersburgo, em um tempo bastante antigo sem alamedas para passeios elegantes, apenas um ar triste e pontes estreitas para atravessar. Em certa rua, um internato para meninos de certo professor alemão e os livros de sua biblioteca, em sua maioria, seguindo a moda dos contos mágicos e cavaleiros andantes. Aliócha, sozinho, lia, nos domingos e feriados, nas longas férias, nas horas longe dos amigos... Aliócha, sozinho, também jamais saía do cercado do quintal. O que havia pelas vielas atraía sua curiosidade e imaginação...
Pogoréslki, abrindo as portas do cotidiano para o ambiente fantástico do subterrâneo noturno das casas e das pessoas, reconhece que não há mais fadas nas sombras que a realidade deita. Seu texto é uma tessitura crítica a um tempo que se movimenta à base de incertezas, fazendo da triste figura de Aliócha o representante de uma geração sem valores claros, entre o presídio escolar e o refúgio inútil dos sonhos pueris. Enquanto corre a peripécia, tudo parece azeitado ao gosto da literatura para crianças: Aliócha salva a estimada galinha do facão de uma cozinheira finlandesa e Pretinha o conduz a um reino escondido, por uma sucessão de quartos e escadas, descendo, descendo, por essas imagens que são a vida particular que a curiosidade do menino não poderia conhecer fora dos próprios devaneios. À primeira vez, Aliócha mostra-se incapaz de obedecer ordens práticas e objetivas, ainda que seja um aluno bom e educado — principalmente, aos olhos que vivem à superfície! Pretinha revela ser o primeiro ministro deste outro lugar e o rei concede a Aliócha a realização de um desejo.
O menino depressa responde: “Queria saber todas as lições sem ter de estudar.” As consequências não virão a ser das melhores para um caráter que principia a moldar-se. Quem poderia pensar Aliócha um personagem tão preguiçoso?
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