22 de março de 2013

“começa por pintar a tua aldeia”

Três autores russos lidos por Peter O. Sagae


Haveria no mundo alguém completamente feliz? Foram os mensageiros do Tsar procurar essa pessoa, mas... “Por mais que procurassem, não conseguiam encontrar alguém totalmente satisfeito – havia aqueles que eram ricos, porém doentes, saudáveis, mas pobres, havia outros saudáveis e ricos, mas com uma esposa má, ou filhos ruins; enfim, todos queixavam-se de alguma coisa.” Bem assim é a vida nas curtas histórias de Liev Tolstói (1828-1910), um escritor que foi pacifista e pedagogo, não-senão-após muitos revezes, com fortes traços de sabedoria popular, os bons sentimentos e a mundividência das gentes simples. Eis, então, que o próprio filho do Tsar ouviu falar um homem, do interior de sua pequena cabana, ao final da tarde: “Bem, graças a Deus, trabalhei bastante, comi bem, e agora vou dormir. O que mais posso querer?”

Perguntas assim — que nos acompanham estrada afora a respeito da existência, da humildade que alivia, do orgulho que pesa, do encontro com outras pessoas que nos levam a nós mesmos, os filhos ingratos, mercadores cobiçosos, engenheiros, engenhosos, acadêmicos trôpegos, camponeses inteligentes ou ingênuos —, aqui e ali, pontuam A pedra na praça e outras histórias de Liev Tolstói (Rovelle, 2012), com seleção de textos e adaptação de Ana Sofia e Tatiana Mariz. Foi CárcamO quem ilustrou o livro com uma aquarela sóbria, mas com luminosos contrastes que se obtém a partir do escuro sépia; CárcamO atento a uma das frases do célebre escritor russo: “Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia.”


O nariz, texto de Nikolai Gógol (1809-1852), traduzido e adaptado por Rubens Figueiredo, ilustrações de Guenádi Spirin (Cosac Naify, 2008), nos leva a conhecer e respirar os ares de São Petersburgo. Ao acordar e cortar o pão, um barbeiro, lá dentro, encontra um nariz e não haverá jeito de desfazer-se da incômoda surpresa, abandonando o achado pelas ruas, tão vigiadas por conhecidos e policiais... Em outro ponto da cidade, o Major Kovalióv desperta e desespera-se ao ver seu rosto refletido no espelho, claro, sem o nariz. Entretanto, vestindo um rico uniforme com bordados de ouro, gola alta, botas até os joelhos e uma espada à cintura, o nariz por aí circula como um importante Conselheiro de Estado. O que pode um nariz entrando ou saindo dos palácios de ricas salas e luxuosos departamentos, metendo-se em negócios onde não fora chamado, sabendo, ou não, qual é o seu lugar? Com um humor bastante político, intrigante, articulado, grotesco, científico, medicinal, aprendemos que muitas vezes um rosto fica bem pior com seu próprio nariz...


Publicado em 1829, A galinha preta, ou Os habitantes do subterrâneo, de Antóni Pogorélski, é considerado o primeiro livro a respeito da infância na literatura russa e chegou ao Brasil com tradução de Klara Gourianova e ilustrações de Laurent Cardon (Edições SM, 2010). A narrativa se abre sobre as pobres ruas revestidas com tábuas podres de São Petersburgo, em um tempo bastante antigo sem alamedas para passeios elegantes, apenas um ar triste e pontes estreitas para atravessar. Em certa rua, um internato para meninos de certo professor alemão e os livros de sua biblioteca, em sua maioria, seguindo a moda dos contos mágicos e cavaleiros andantes. Aliócha, sozinho, lia, nos domingos e feriados, nas longas férias, nas horas longe dos amigos... Aliócha, sozinho, também jamais saía do cercado do quintal. O que havia pelas vielas atraía sua curiosidade e imaginação...


Pogoréslki, abrindo as portas do cotidiano para o ambiente fantástico do subterrâneo noturno das casas e das pessoas, reconhece que não há mais fadas nas sombras que a realidade deita. Seu texto é uma tessitura crítica a um tempo que se movimenta à base de incertezas, fazendo da triste figura de Aliócha o representante de uma geração sem valores claros, entre o presídio escolar e o refúgio inútil dos sonhos pueris. Enquanto corre a peripécia, tudo parece azeitado ao gosto da literatura para crianças: Aliócha salva a estimada galinha do facão de uma cozinheira finlandesa e Pretinha o conduz a um reino escondido, por uma sucessão de quartos e escadas, descendo, descendo, por essas imagens que são a vida particular que a curiosidade do menino não poderia conhecer fora dos próprios devaneios. À primeira vez, Aliócha mostra-se incapaz de obedecer ordens práticas e objetivas, ainda que seja um aluno bom e educado — principalmente, aos olhos que vivem à superfície! Pretinha revela ser o primeiro ministro deste outro lugar e o rei concede a Aliócha a realização de um desejo.
O menino depressa responde: “Queria saber todas as lições sem ter de estudar.” As consequências não virão a ser das melhores para um caráter que principia a moldar-se. Quem poderia pensar Aliócha um personagem tão preguiçoso?

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