Peter O’Sagae
Em 1995, Angela Lago apresentava O PERSONAGEM ENCALHADO para crianças e adultos exigentes. Nesta obra contendo apenas vinte e quatro páginas escritas e rabiscadas, como um rascunho, uma estranha figura esguia, com a aparência de gênio ou outra espécie curiosa, emerge da dobra central do livro – e busca dali escapar. Quando pensa ter êxito na fuga, ele nota, decepcionado, o pé preso no grampo da encadernação... E, irremediavelmente preso, o personagem encalhado sucumbe na montoeira de palavras manuscritas por algum autor invisível.
Ora, brincando com as categorias da construção literária e o uso do suporte material, sempre em uma atitude de metalinguagem, a autora Angela Lago estabelece uma cena a respeito da desventura do texto. Já não existe mais uma história a ser contada, daí que o personagem encalhou. O tempo e o espaço são tão só espaço gráfico e um tempo-movimento que advém da mão de cada leitor para virar a página – ou, indiscretamente, bisbilhoteiro e estacionado, colocar-se à leitura do rascunho em letras miúdas e cinzas ao fundo. O texto lá escondido e à mostra como cenário, é repetido por quarenta e duas vezes como variações de um exercício de escrita. Existe pois um jogo deliberado, intencional, complexo à luz de algumas teorias. Há quem aí possa apostar em desconstrução. No entanto, jamais abandonando a comunicação com a criança e o senso lúdico e o humor e a cooperação dos leitores.
Em 2000, Elisa Lucinda trouxe à literatura infantil A MENINA TRANSPARENTE, com ilustrações de Graça Lima, versos de métrica bastante prosaica e rimas de quando em quando. Essa menina não é uma personagem, mas uma personificação. Nas asas da adivinha e da metáfora, disfarçada de todas as coisas, a menina esparge pistas sobre si e o seu modo de existir – “Uns me pegam pra criar em livro,/ Outros me botam num vestido lindo”, “Tem gente que diz que eu/ Nasço dentro da pessoa,/ E faço ela olhar diferente”. Voando, livre, a voz lírica anima um corpo imaginário de sentimentos e passagens por lugares diversos, do papel à palestra, da música ao mar, do ar às plantas, das estrelas à esperança. Sim, a menina transparente é a Poesia.
Ora, Dobras da Leitura tem recebido livros* que já não podem ser compreendidos, nem criticados rumo a um ou outro projeto de literatura para crianças. Passando do feitio dos textos aos efeitos sobre a recepção, muitos trabalhos denunciam a si mesmos pelo afastamento voluntário do mundo que nos rodeia e que poderiam representar em suas páginas. No entanto, neles também não encontrei rastros de metalinguagem, som e sentido, imagens e enigmas entre o verbal e a ilustração. A falta de coerência não deve ser levada à conta de negar a construção ficcional estabelecida pela tradição das histórias, mas uma fraqueza insuperável para o leitor – em suas várias idades.
Revendo os estruturais de uma narrativa, tempo e espaço indeterminados têm produzido a anulação de cenários onde os personagens pudessem se movimentar e transformarem-se. A ilustração igualmente comparecerá vazia de sintaxe e significados, na página com fundo uniforme ou com texturas assumindo a tarefa de ambientar desenhos sem contiguidade de ação. Sem esse compasso antes/depois, causa e consequência, nenhuma história se desenrola. As personagens estão encalhadas.
Por um excesso de laboratório com a linguagem, as personagens perderam-se em algo que não é representação, nem poesia; algo que não pode ser lido fora de uma descrição de emoções e episódios particulares, de acentos ligeiros, dor que fingida ou honestamente não dói, alegria que não anima. Mas talvez essas estratégias venham responder a um exercício íntimo de conhecimento e ninguém aqui poderia vir censurar a iniciativa do invento... A deficiência da crítica é muitas vezes enfrentar silenciosamente esse moinho de solipsismo que pretende nos ensinar que o único ser existente é uma personagem dona do próprio nariz, autorreferente e autossuficiente, dispensando a companhia do leitor, qualquer leitor.
* Nas fotografias, por ordem de publicação: DESLEMBRAR, de Luciano Pontes e Rosinha (Larousse, 2009), A MENINA QUE FALAVA BORDADO, de Blandina Franco e José Carlos Lollo (Amarilys, 2010), MENINA-MENINA, PRINCESA DE LAMA..., de Rosana Villela e Giselle Vargas (Paulinas, 2011), O MUNDO DE UMA MENINA DE SONHOS, de Renata Wirthmann e M. Monteiro (Cepe, 2011), e CARMELA CARAMELO, de Cristiane Rogerio e André Neves (Cortez, 2012).
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