21 de outubro de 2013

canto para uma cor só

Peter O’Sagae


No mesmo ano em que chegava para todos a imagem crispada do primeiro homem a pisar na lua, partia para lá uma cor sem par, nem pátria. Uma cor chamada Flicts, diferente e extravagante, sem a força do Vermelho, a luz do Amarelo ou a paz do Azul, uma cor que ninguém quer na caixa dos lápis de cor, nas brincadeiras da primavera, após a chuva, nas bandeiras... Aflito, triste e feio, tão só, mas cheio de it, Flicts desiste da realidade que o repele e vai subindo, sumindo, subindo, sumindo... até que a lua tornou-se toda flicts!

Lançado em 1969, o livro de Ziraldo recebeu comentários de Carlos Drummond de Andrade a Nelly Novaes Coelho que, a despeito da colorida beleza gráfica, não viu o endereçamento da obra para crianças, mas um texto de simplicidade enigmática para jovens e adultos. Uma alegoria, talvez, presa ao contexto de uma época: o narrador diz tudo o que Flicts não é, e parece-se muito com alguém que se viu e partiu num rabo de foguete, isto é, com todas as dificuldades para cumprir algo a que estava programado ou prometido.


Em outras leituras, já tentamos ser convencidos a respeito da paráfrase sobre Andersen e o Patinho Feio, tão triste e sofredor quanto Flicts. Contudo, no final, uma contradição frente ao conto do escritor dinamarquês: se o patinho ascende e voa, ao descobrir sua verdadeira natureza de cisne, com a afirmação da convivência entre iguais, Flicts vai subindo e sumindo rumo ao isolamento fantástico sobre si mesmo, à negação da convivência entre iguais... Ora, esta não é, não seria uma mensagem oportuna ou muito otimista para o público infantil, com uma imagem valorativa tão voltada para si mesmo, centrada e centralizadora, que a velha (e boa) pedagogia esforça-se por modificar. O simbolismo da lua é muito bonito e mágico, em diversas culturas, tanto representa o inatingível, quanto o admirável – e o satélite lá no alto, sozinho e insondável para o comum das pessoas. Mas... Oh, lua no golfão de cismas e solipsismo!


No entanto, ‘inda ontem, um detalhe necessário do texto novamente se apresentou: Flicts transforma-se em flicts, de personagem a uma coisa ou qualidade, ao duplo it que nos é permitido reconhecer nos exercícios de leitura. E, se queremos Andersen, ao modo das comparações imperfeitas, a Andersen havemos de recorrer mais uma vez:

“..., com olhar triste, ela fitou o príncipe, e depois atirou-se do navio ao mar, sentindo como seu corpo se desfazia em espuma. 

“O sol ergueu-se sobre o mar. Seus raios quentes caíram sobre a espuma. A pequena sereia não sentia a morte. Viu o sol claro, e, a voar por cima dela, centenas de formosas e diáfanas criaturas. Através delas, a sereia viu as velas brancas do barco e as rubras nuvens do céu. As vozes daquelas criaturas soavam como lindas melodias, mas nenhum olho humano podia ver quem cantava. Sem asas, eram tão leves que esvoaçavam no espaço. A pequena sereia percebeu então que seu corpo era como o delas, a elevar-se cada vez mais da espuma. 

“– Para onde vou? – perguntou ela.”


P.S.1 Sim, a postagem anterior me inspira a retomar o tema da postura solipsista dentro da produção literária para crianças; deveríamos diferenciar os estados de solidão dolorosa, contemplativa ou voluntária que alguns personagens sofrem como acossamento ou acabam por impor a si mesmos como busca de beleza ou desprendimento dos motivos de sua aflição.

P.S.2 A lua e as demais cores de Ziraldo reverberam na ilustração de André Neves: a capa é flicts, mas levo o olhar atento para o guarda-chuva. São as recorrências que permitem reconhecer as imagens ou representações, umas nas outras, como emblemas ou estigmas da literatura para crianças.

P.S.3 A tradução de “A pequena sereia” por Guttorm Hanssen, com a revisão estilística de Herberto Sales, do livro Contos de Andersen (Paz e Terra, 1978).

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