com Peter O’Sagae
A dúvida me envaidece, leva-me adiante entre as coisas do dia a dia. As boas conversas, os bons textos, parecem começar sempre com uma pergunta simples... Lembro uma vez que Silvana Gili aqui esteve no gabinete de idéias* e perguntou se eu conhecia a literatura do uruguaio Germán Machado; devo ter respondido nenhum verso – e ela, pouco depois, tirava de um bolsinho o pen-drive contendo uma cópia do livro VER LLO VER, com ilustrações de Fernando de la Iglesia (Calibroscopio, 2010), conduzindo-me a outra experiência de leitura, a uma dobra possível da poesia latino-americana.
A simpatia sobre o título – com o singelo material sonoro da paronomásia encapsulado visualmente na capa do livro – foi imediata. Ver um verbo contido no outro faz ‘ver e rever’ uma emoção, um pensamento, toda uma cena, um ritual, porque quase sempre paramos para ver o céu e o mundo, antes, durante e depois de... chover! Há também um jogo, a montagem com as sílabas que ali vêm em parataxe: leio o título de cima para baixo, leio as letras brancas de baixo para cima, contra o fundo listrado colorido. A chuva e a leitura demandam a mesma expectativa.
O que encontro é uma obra programática bastante sensível, em que o tema não reduz o trabalho com a linguagem, seu ritmo, e a renovação do olhar e o animismo que desperta da observação de variados fenômenos da natureza. Germán Machado fala de gotas cheias de água e íris, a garoa, a neblina que esconde a rua, o olho do furacão que não vê nada nem ninguém, o desconforto de um domingo cinza, enfim, o poeta fala das possibilidades de observar e aprender a escolher o que se quer realmente ver, e saber comover-se com os fatos que completam a paisagem humana. É a chuva que cada um pode imaginar...
Para não ficar em dívida com alguns leitores, arrisco, arisco, uma tradução para o primeiro poema do livro. Pois começa com uma pergunta! Quem sabe, um dia, tenhamos mais Germán Machado em língua portuguesa?
VER
CHO
VER
Que cor tem o ar
e a água
e os assovios do vento
numa tarde de chuva?
Olhe para a rua e veja os gatos
refugiando-se debaixo dos carros,
abrigando-se do frio
e da garoa fina.
Dependem de teus olhos
as cores.
E quando estás quieto
e te molhas
e uma brisa acaricia teu rosto
enquanto dizes:
vermelho, azul, amarelo,
gatos, carros, garoa à toa...
as palavras te emprestam as cores que faltam
no ar, na água, na rua,
nos teus olhos nublados,
surpreendidos.
[Germán Machado, 2010]
trad. Peter O'Sagae, 2015
P.S. Após publicada a postagem, informou o autor a tradução de Ver chover por Ana Busch, publicada através do selo infantil da editora Casa Amarela.
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