31 de março de 2013

dos animais para os livros

O’ABRE ASPAS para Jorge Luis Borges


Ilustração de Ester Garcia Cortes para o guia e campanha de leitura do Centro Internacional del Libro Infantil y Juvenil (CILIJ) da Fundación Germán Sánchez Ruipérez, em 2010, e uma lista curiosa para desensinar nossas crianças nos jogos imaginativos e outros artifícios inquietantes de Jorge Luis Borges, quem ordena, leva, condena, liberta nossa percepção à certa enciclopédia chinesa, chamada Empório Celestial de Conhecimentos Benévolos...

“Em suas distantes páginas está escrito que os animais assim se dividem:

a) pertencentes ao Imperador,
b) embalsamados,
c) amestrados,
d) leitões,
e) sereias,
f) fabulosos,
g) cães sem dono,
h) incluídos nesta classificação,
i) que se agitam feito loucos,
j) inumeráveis,
k) desenhados com um pincel finíssimo de pelo de camelo,
l) etc.,
m) que acabam de quebrar um vaso de flores,
n) que, ao longe, assemelham-se às moscas.”


Feliz Páscoa com um fragmento do conto “O idioma analítico de John Wilkins”, publicado na antologia Outras inquisições, de Jorge Luis Borges (1952).

30 de março de 2013

uma escritora e o jabuti de ouro

peter o.sagae nos bastidores da leitura

Entre os escritores e ilustradores de literatura infantil, reza a lenda ou fábula de que o sujeito precisa de cuidados redobrados após conquistar um jabuti, o primeiro Jabuti com J maiúsculo... Não pense você em um animal de carapaça dura e fria: pense em um quelônio com letras às costas, no prêmio concedido anualmente pela Câmara Brasileira do Livro aos melhores do setor editorial.


Se o primeiro vem, nunca se sabe quando chegará o segundo... Dizem que todos os parentes são lentos! E resta aos premiados torcerem pacientemente por uma jabota – a fim de formar um casalzinho, assim que possível, e estabelecer família.


Contudo, em 2012, Stella Maris Rezende veio mineiramente nos contar outra história. Arrebatou, de maneira inédita, o primeiro e segundo lugares do 54º Prêmio Jabuti – Melhor Livro Juvenil, respectivamente com A MOCINHA DO MERCADO CENTRAL (Globo, 2011) e A GUARDIÃ DOS SEGREDOS DE FAMÍLIA (Edições SM, 2011), título também vencedor do Prêmio Barco a Vapor 2010.


Foi uma noite de verdadeira estrela brilhando e, quem suspeitaria, vinte anos de espera, veteranamente Stella literária, candidata ao Livro do Ano de Ficção... e Stella Maris voltou ao palco da Sala São Paulo para abraçar o mais novo filhote, tão rápida assim é a felicidade de um casal promissor: um Jabuti de Ouro.


Meninos, eu vi... meninos, eu li! 

Com outro título, o texto de A MOCINHA DO MERCADO CENTRAL havia passado por minhas mãos, em maio de 2008, quando estive no júri de leitores críticos do Barco a Vapor. Era somente “Guia mágico para imaginar Maria” e já surpreendia por uma estrutura de capítulos justapostos como quadros pendurados à parede invisível da memória. Maria emoldurada por diferentes nomes, assumindo diferentes vidas, passando uma temporada ou uma chuva, como se diz, em diferentes cidades brasileiras... Mágico mesmo é essa coisa, essa ânsia de mudar o próprio mundo com uma palavra só, um nome. Maria sabe que precisa vestir-se com muitos nomes, para despir-se como personagem em busca de si mesma e de sua história, sonhos escapando pelos olhos, esperança e fragilidade no sorriso construído com gestos firmes. Stella Maris Rezende convida-nos para irmos lendo, lendo, imaginando o que sabemos sobre o perdão. Quando comecei a ler o livro ilustrado por Laurent Cardon e editado por Cecilia Bassarani, pensei: esse filme, eu já vi. E estava certo.

Coincidência ou não, no concurso do Barco a Vapor 2010, voluntariamente cruzava os dedos pelo texto de A GUARDIÃ DOS SEGREDOS DE FAMÍLIA, sem atinar quem poderia ser a autora daquela escrita de ficção que, rompendo com o caráter linear, nos conduz a um universo poético, feminino e dramático. Trata-se de uma obra rica em recursos de linguagem e muitos vazios para o leitor preencher & recompor a história de Nenenzinha, menina ainda e tia de quatro órfãos: Niquinho, Chiquito, Quinzinho e Célia, batizados Antônio Francisco, Francisco Antônio, Joaquim Francisco e Célia Francisca, confiados ou confinados na casa de um parente e sua esposa má. Muitos personagens sob o mesmo teto, muitas falas em um mesmo texto, provocam a impressão de estarmos todos entre as três paredes de um teatro – sim, de algum modo, fomos convidados a tomar parte das cenas e estamos bem próximos a esta família, ouvindo as conversas, meias sentenças, palavra e meia, silêncio, a ponto de descobrir seus segredos...


Conheci Stella Maris Rezende em carne e osso, três dimensões, abraços e cores, ladeada por Mariângela Haddad e Vivina de Assis Viana, na noite do 6º Prêmio Barco a Vapor de Literatura Infantil e Juvenil, aqui em São Paulo. Esse encontro levou-me de volta ao primeiro livro de Stella que li e ao estilo tão monjolo, milho, mão de almofariz e beija-flor que bate direto no coração... Mas essa história fica para outro dia!

28 de março de 2013

três livros de imagem em uma só obra

O’ABRE ASPAS para Suzy Lee


“Abrimos um livro ilustrado. Olhamos o sonho ‘dentro’ do livro.
Entretanto, de uma maneira ou de outra, somos afetados pelo seu formato, a textura do papel, a direção na qual as páginas são viradas. Os aspectos físicos do livro podem limitar a imaginação do artista, mas, por outro lado, podem se tornar um novo ponto de partida para a imaginação. Após cairmos dentro de um livro e voltarmos como de um sonho, o livro como objeto nos parece totalmente diferente.” (Suzy Lee) A TRILOGIA DA MARGEM, 2012.

***

Com estas palavras, Suzy Lee abre o livro-ensaio, caixa de reflexões e contínua aprendizagem sobre o processo de criação de seus três principais livros de imagem: ONDA (2009), ESPELHO (2010) e SOMBRA (2011), publicados no Brasil pela Cosac Naify. Em uma só obra, a autora sul-coreana aciona e orienta nossas leituras nas questões do objeto-livro que lhe impulsionam o trabalho, repetindo com simpatia e extrema fidelidade os conteúdos compartilhados em palestras e rodas de conversa que realiza em torno do mundo e de seus livros para crianças.

Mais que uma referência teórica, A TRILOGIA DA MARGEM é um feature provocativo, pelas páginas vazias e cheias de construção, através do limitado espaço gráfico que parte rumo ao exercício sem limites da fantasia e do conhecimento sensível: quem sou eu, o que são os livros? Para desenhar uma resposta, necessário designar mergulhos, simetrias e clarões que emergem das formas, da figura das palavras e os signos da dobra, entre o oculto da margem e o tempo que impôs o virar das páginas.



p.O's. escreve um P.S. Espero que, um dia, outros livros de referência para literatura infantil possam ser feitos igualmente assim para uma leitura experiência, anterior a qualquer retórica, posterior às repetições dos clichês sociológicos ou de uma psicologia de banca de jornal. Livros-aula, objeto e caminho. Ato de descrever. Para nos inspirar... O resto é interpretação.

27 de março de 2013

você acredita em histórias sem palavras?

Três livros de imagem brasileiros, por Peter O. Sagae


Entre diferentes tipos de livro de imagem, muitos são os títulos a nos trazer uma narrativa sucessiva – segmentando, através de várias páginas, um evento que poderia ser facilmente descrito em uma única frase, com pouquíssimas orações coordenadas ou meramente justapostas.

Por exemplo: uma bola de borracha cai do cesto carregado por um índio, passa diante dos olhos de um menino e vai descendo a ladeira estreita, atraindo a atenção das pessoas, principalmente dos moleques que a querem alcançar.

A narração, assim tirada, soa bastante mecânica a nossos ouvidos até que...  

Até que a bola salta à testa de um negro escravizado e é desviada a outro que amortece sua velocidade no peito, que lança a bola a outro, que a leva adiante 
a mais outro: a descrição desses movimentos rompe a primeira sequência narrativa, mas não demora muito para a bola tornar a rolar pelas ruas com adultos e crianças atrás.


Como a estrutura de um livro de imagem permite ações simultâneas, outros personagens podem integrar a sequência de páginas: surge, pois, um homem louro montado em um cavalo baio no contra-fluxo da turba agitada. O animal se assusta, empina a montaria mas, logo, alguém aparece para controlar a bola nos pés. É nesse jogo de ação e descrição que a narrativa visual vai sendo construída. A bola retoma a descida pelas ruas e já o cavaleiro segue atrás do grupo, até um largo de chão mais plano. O que se vê, então, é uma multidão de movimentos tão típicos de um jogo de bola sob o olhar sorridente do homem sobre o cavalo. A emoção e o esforço para obter o controle da bola são bastante expressivos nos desenhos de Jô Oliveira, no livro OS DONOS DA BOLA (Escala Educacional, 2010). De fato, quem inventou os primeiros dribles também inventou um jogo. No entanto, os homens da guarda põem um término na alegria geral, restando no largo apenas o cavaleiro e a bola de borracha...

A narrativa que vinha reduzida à lógica consecutiva de ações atrás de ações, passa a exigir um pouco mais de interpretação sobre as consequências do que virá a acontecer: o homem louro apeia de seu cavalo, observa, aperta, carrega a bola – para onde? Ele embarca em um navio e aparece, dentro da cabine, explicando os movimentos do jogo que viu anonimamente inventado. A última página do livro revela a imagem, atravessando as ondas, de um navio com uma bandeira inglesa.

Ficam as perguntas para o leitor: quem são os donos da bola, quem são os donos do jogo de futebol? Obrigando as relações palavra&imagem ao didatismo verbal, a quarta capa informa que a história aconteceu no antigo Morro do Castelo, no centro do Rio de Janeiro, ponto importante da fundação da cidade. No entanto, nenhum texto esclarece se é História ou fato imaginado toda essa brincadeira com a bola entre os pés de meninos e homens escravos, ante a admiração do estrangeiro inglês... Tudo isso realmente se passou na Corte de D. João VI?


Integrando a mesma coleção, A BUSCA DO CAVALEIRO, de Fernando Vilela (2009), revela ser outra narrativa sucessiva: um cavaleiro medieval, com sua lança, enfrenta um dragão E, montando a fera, com sua espada, enfrenta uma gigantesca cobra amazônica E, montando o monstro, arremete contra um palácio árabe, onde enfrenta muitos soldados E, descendo e subindo escadas, encontra sua princesa E, finalmente, escapa às costas de um pássaro enorme que ganha distância, desaparecendo no céu. Ora, tempos atrás, pensei ver não exatamente uma narrativa, nesta sequência de imagens, mas uma espécie de rapsódia visual – certo fragmento ou composição livre, utilizando processos imagéticos e efeitos variados.


Com bastante humor, Renato Moriconi nos presenteia com o livro E A MOSCA FOI PRO ESPAÇO (2011) que narra, de forma sucessiva igualmente, os apuros dessa pequena e pegajosa viajante por alguns lugares da cidade de São Paulo – sim, uma das primeira imagens em página dupla descreve o coração da metrópole com as inconfundíveis referências ao ondulado Edifício Copan, o Terraço Itália, o MASP e o Minhocão, as antenas da Avenida Paulista, entre outros prédios, helicópteros, coberturas e parabólicas.


Entrando por uma janela, a mosca entra também na boca da velha que estava com a boca aberta, mas, imediatamente, é soprada para dentro de um balão vermelho. O vento vem e leva a bexiga para as mãos de um balonista em uma viagem pelas três Américas. Uma águia rouba o balão vermelho e vai pousar... no alto de um foguete em ignição! E a mosca, ainda presa, vai realmente pro espaço... Mas, o desfecho, não conto, não! O trabalho gráfico de Renato Moriconi nos reporta ao ambiente dos desenhos animados, dos intertextos literários e a irreverência de Juarez Machado, na TV ou em seu primeiro livro de imagem ;-)

25 de março de 2013

cacos de tempos passados

por Peter O.Sagae


Somente a voz da bisavó conseguia decifrar, com sentimento sem igual, um romance pintado em miniatura no fundo de um prato de porcelana. Nos olhos dóceis e ouvidos atentos da menina Cora Coralina, a história da Princesinha Lui e do jovem plebeu reinventava-se em meandros e segredos, através dos delicados desenhos em meio-relevo em azul-forte, azul-pombinho, contra o fundo claro, contra o tempo da memória que se transforma e da imaginação que faz crescer os detalhes complicados. Todavia, um dia, por artes do salta-caminhos, o último prato do aparelho de jantar com noventa e duas peças apareceu quebrado...

Foi ou não a menina “inzoneira, buliçosa e malina”? Responder isto estava fora de cogitação... Foi mesmo castigo sem defesa, como em tempos antigos se fazia – e um caco de louça, pendurado a um cordão, foi levado ao pescoço da pequena Cora.



Brincando a seu modo com palavra e imagem, o delicado texto-vida foi publicado primeiramente no livro POEMAS DOS BECOS DE GOIÁS e estórias mais, em 1965, sob o título “Estória do aparelho azul-pombinho”. Dialogando com leitores de qualquer idade, Cora Coralina ganhou duas bonitas versões ilustradas de O PRATO AZUL-POMBINHO por Angela Lago (Global, 2001) e Lúcia Hiratsuka (2011), além de apresentar-se intertextualmente em outros trabalhos da literatura para crianças. *


Sônia Barros escreveu O SEGREDO DA XÍCARA COR DE NUVEM, com ilustrações de Ana Terra (Moderna, 2009) — uma xícara única e delicada, cinza, azul e suave carmim, numa cor de nuvens que o tempo deu à velha porcelana, atravessa gerações: do aparelho de chá completo e branco que pertenceu a Ana, trisavó da narradora, para os guardados na cristaleira da avó Aninha e, finalmente, às mãos ansiosas e pouco seguras de Marina. A peça se desfaz em pedacinhos e lágrimas. Contudo, o incidente faz emergir as histórias a respeito das outras cinco xícaras e como se perderam ao longo do tempo. Este é o segredo de família que se compartilha, reavivando instantes e presenças do passado em cada gesto do presente. A narrativa feminina e fragmentária de Sônia Barros mantém um íntimo diálogo com a memória do prato azul-pombinho dos versos de Cora Coralina, de tal maneira que temos aí uma paráfrase bastante marcada, uma homenagem. Há, entretanto, um desvio em relação a história exemplar da doceira-poeta da Cidade de Goiás: em vez da severidade representada pelo colar de cacos no pescoço da menina, Sônia Barros inventa afetos e um outro segredo: um frasco de cola para porcelana que, anos e anos, tem sido utilizado para manter aparentemente intacta a última xícara do antigo jogo, a princesa de pele mesclada de toda a cristaleira.**


Por sua vez, Vivina de Assis Viana recolhe do fundo do córrego as tristes lembranças de uma menina, a pequena narradora, junto a seu irmão colecionando cacos de louça que brilham, na água, como vidro vivo, grandes, pequenos, arredondados, compridos, de todo jeito, coloridos ou brancos, com listras e outras estampas miúdas. Mas havia um pequeno e branco com listas cor de rosa (sic), objeto de disputa: afinal, quem o encontrou? O menino diz ter sido ele — “Mas é mentira, fui eu, e guardei lá na casinha do tanque, junto com os outros. Mas meu irmão é maior do que eu, foi lá e tirou. E guardou junto com as coisas só dele. E pôs o nome: o rei dos cacos.” Nada grave a rivalidade fraternal, principalmente quando lá estão as árvores para subir, as galinhas para correr atrás, as frutas verdes para comer e um outro dia para continuar buscando cacos no leito do rio... Se um fosse igual a outro, talvez viesse a encaixar-se no pedaço já guardado — como os textos a serem descobertos, sempre mergulhados em outros textos, tal este O REI DOS CACOS, originalmente ilustrado por Rubens Matuck (1977), depois Carlos Moreno (1983) e agora a terceira edição nas cores profundas de Taisa Borges (Brasiliense, 2009). ***


* O livro de Cora Coralina foi apresentado em Dobras da Leitura, Ano III N.º 9 (2002).
Comentários revistos e ampliados em março de 2013 para Dobras da Leitura O’Blog.

** Resenha escrita originalmente para a Bibliografia Brasileira de Literatura Infantil e Juvenil 2009, 

da BIJ Monteiro Lobato – Secretaria de Cultura/PMSP.

*** Obrigado, May Shuravel, por lembrar e levar-me às edições anteriores!

o tesouro da memória coralina

Mais três livros que Dobras da Leitura recebeu...


Menina, você sabe o que é ser “menina prestimosa e trabalhadeira à moda do tempo” como diz Cora Coralina? E o que era ser menina às vésperas de um novo século, em 1899, para você que nasceu tão agora após o ano 2000? Pois imagine encontrar um espaço na cozinha de uma velha casa, arear um tacho de cobre – você sabe o que é arear um tacho de cobre? – ralar coco carnudo e branco, fazer tarefas que só adultos sabiam fazer... Pois coisas assim habitam a memória afetiva de uma escritora pra lá de centenária e um cheiro doce exala ‘inda hoje de seus textos.

AS COCADAS, com ilustrações de Alê Abreu (Global, 2007), é uma crônica que se corta em losangos, desejos de noite, sonhos de dia com “as cocadas moreninhas, de ponto brando, atravessadas aqui e ali de paus de canela” guardadas no alto, tão alto, de uma prateleira na cozinha. Até quando foi preciso esperar?


No ritmo dessas mesmas leituras que se recomendam dos 8 aos 80 anos,
A MENINA, O COFRINHO E A VOVÓ, com ilustrações de Claudia Scatamacchia (2009) conta a história de uma velha que tinha filhos, netos e bisnetos, mas morava longe e sozinha porque “queria viver simples, sua vida, a sua maneira”. Preferiu a terra onde nasceu, lá onde suas raízes eram fortes.


Um dia, a velha decidiu trabalhar, fazendo doces antigos. “E começou. E mexe e vira e revira, acerta, faz e refaz...” Acertou o ponto, os ponteiros, o caminho de sabores que voaram terras e mares, até que ela achou por bem que era hora de comprar uma geladeira... Quando a netinha veio visitar a velha, também achou por bem ajudar a avó nas prestações: tirou o dinheiro do cofrinho e, algum tempo mais tarde, a velha que era Cora pagou o empréstimo com uma história, mais os juros de mora de seu grato coração.


Em CONTAS DE DIVIDIR E TRINTA E SEIS BOLOS (2011), as ilustrações de Claudia Scatamacchia suavizam a lição da palmatória que transforma a vida de Zezinho em um verdadeiro suplício na escola da Fazenda Paraíso, ao mesmo tempo em que as imagens igualmente buscam amenizar a vida dos leitores através de um conto cavado a vocábulos pouco comuns no nosso dia a dia. Resulta daí um exercício editorial de estabelecer uma correlação palavra&imagem necessariamente estreita, como sugere uma nota ao rodapé: “A ilustração de Cláudia Scatamacchia mostra detalhes do texto. Descubra o que são canastras e dobros, por exemplo, observando os animais de carga.” Em que persistam os detalhes saborosos da narrativa coralina a respeito de práticas pedagógicas distantes e da própria infância, talvez, talvez, não seja lá um doce de texto para o paladar infantil.

P.S. Não deixe de espiar O’ABRE ASPAS abaixo ;-)

diálogos nem sempre dialógicos...

O’ABRE ASPAS para um olhar especial


“Entra em cena a função pedagógica, que se utiliza da imagem como uma estratégia para materializar, determinar e preencher aquilo que poderia se transformar, pela imaginação do leitor-criança, num campo vago e impreciso de possíveis construções imagéticas [...] Não resta dúvida de que é uma forma de dar veracidade à narração, conferindo à palavra-geral e simbólica um caráter de índice, de existente real e individualizado. É a conexão, por contiguidade e subordinativa, texto-ilustração que permite maior eficácia do processo comunicativo, garantindo que as informações nucleares da narrativa, graças ao estímulo da imagem, criem hábitos associativos tais que sejam inscritos diretamente no pensamento da criança com o mínimo de esforço e com o menor dispêndio de energia possível.” (Maria José Palo e Maria Rosa D. Oliveira) Literatura infantil: voz de criança, 1983.

22 de março de 2013

“começa por pintar a tua aldeia”

Três autores russos lidos por Peter O. Sagae


Haveria no mundo alguém completamente feliz? Foram os mensageiros do Tsar procurar essa pessoa, mas... “Por mais que procurassem, não conseguiam encontrar alguém totalmente satisfeito – havia aqueles que eram ricos, porém doentes, saudáveis, mas pobres, havia outros saudáveis e ricos, mas com uma esposa má, ou filhos ruins; enfim, todos queixavam-se de alguma coisa.” Bem assim é a vida nas curtas histórias de Liev Tolstói (1828-1910), um escritor que foi pacifista e pedagogo, não-senão-após muitos revezes, com fortes traços de sabedoria popular, os bons sentimentos e a mundividência das gentes simples. Eis, então, que o próprio filho do Tsar ouviu falar um homem, do interior de sua pequena cabana, ao final da tarde: “Bem, graças a Deus, trabalhei bastante, comi bem, e agora vou dormir. O que mais posso querer?”

Perguntas assim — que nos acompanham estrada afora a respeito da existência, da humildade que alivia, do orgulho que pesa, do encontro com outras pessoas que nos levam a nós mesmos, os filhos ingratos, mercadores cobiçosos, engenheiros, engenhosos, acadêmicos trôpegos, camponeses inteligentes ou ingênuos —, aqui e ali, pontuam A PEDRA NA PRAÇA e outras histórias de Liev Tolstói (Rovelle, 2012), com seleção de textos e adaptação de Ana Sofia e Tatiana Mariz. Foi CárcamO quem ilustrou o livro com uma aquarela sóbria, mas com luminosos contrastes que se obtém a partir do escuro sépia; CárcamO atento a uma das frases do célebre escritor russo: “Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia.”


O NARIZ, texto de Nikolai Gógol (1809-1852), traduzido e adaptado por Rubens Figueiredo, ilustrações de Guenádi Spirin (Cosac Naify, 2008), nos leva a conhecer e respirar os ares de São Petersburgo. Ao acordar e cortar o pão, um barbeiro, lá dentro, encontra um nariz e não haverá jeito de desfazer-se da incômoda surpresa, abandonando o achado pelas ruas, tão vigiadas por conhecidos e policiais... Em outro ponto da cidade, o Major Kovalióv desperta e desespera-se ao ver seu rosto refletido no espelho, claro, sem o nariz. Entretanto, vestindo um rico uniforme com bordados de ouro, gola alta, botas até os joelhos e uma espada à cintura, o nariz por aí circula como um importante Conselheiro de Estado. O que pode um nariz entrando ou saindo dos palácios de ricas salas e luxuosos departamentos, metendo-se em negócios onde não fora chamado, sabendo, ou não, qual é o seu lugar? Com um humor bastante político, intrigante, articulado, grotesco, científico, medicinal, aprendemos que muitas vezes um rosto fica bem pior com seu próprio nariz...


Publicado em 1829, A GALINHA PRETA, ou OS HABITANTES DO SUBTERRÂNEO, de Antóni Pogorélski, é considerado o primeiro livro a respeito da infância na literatura russa e chegou ao Brasil com tradução de Klara Gourianova e ilustrações de Laurent Cardon (Edições SM, 2010). A narrativa se abre sobre as pobres ruas revestidas com tábuas podres de São Petersburgo, em um tempo bastante antigo sem alamedas para passeios elegantes, apenas um ar triste e pontes estreitas para atravessar. Em certa rua, um internato para meninos de certo professor alemão e os livros de sua biblioteca, em sua maioria, seguindo a moda dos contos mágicos e cavaleiros andantes. Aliócha, sozinho, lia, nos domingos e feriados, nas longas férias, nas horas longe dos amigos... Aliócha, sozinho, também jamais saía do cercado do quintal. O que havia pelas vielas atraía sua curiosidade e imaginação...


Pogoréslki, abrindo as portas do cotidiano para o ambiente fantástico do subterrâneo noturno das casas e das pessoas, reconhece que não há mais fadas nas sombras que a realidade deita. Seu texto é uma tessitura crítica a um tempo que se movimenta à base de incertezas, fazendo da triste figura de Aliócha o representante de uma geração sem valores claros, entre o presídio escolar e o refúgio inútil dos sonhos pueris. Enquanto corre a peripécia, tudo parece azeitado ao gosto da literatura para crianças: Aliócha salva a estimada galinha do facão de uma cozinheira finlandesa e Pretinha o conduz a um reino escondido, por uma sucessão de quartos e escadas, descendo, descendo, por essas imagens que são a vida particular que a curiosidade do menino não poderia conhecer fora dos próprios devaneios. À primeira vez, Aliócha mostra-se incapaz de obedecer ordens práticas e objetivas, ainda que seja um aluno bom e educado — principalmente, aos olhos que vivem à superfície! Pretinha revela ser o primeiro ministro deste outro lugar e o rei concede a Aliócha a realização de um desejo.
 

O menino depressa responde: “Queria saber todas as lições sem ter de estudar.” As consequências não virão a ser das melhores para um caráter que principia a moldar-se. Quem poderia pensar Aliócha um personagem tão preguiçoso?

18 de março de 2013

três contos de arrepiar, ou arrepender-se

peter O’sagae*


MINHAS ASSOMBRAÇÕES, de Angela-Lago (Edelbra, 2009), apresenta confissões do outro mundo que vêm judiar do leitor incauto com seu abraço frio,


mostrando-lhe a língua ou mesmo estragando aquele fim de festa com um toque nada romântico... Quem aparece na primeira história – “A boazinha” – é a própria Morte que, por não suportar menino chorando, resolve dar um jeitinho no leitor!


Depois, uma alma defunta – “A invejosa” – durante o próprio velório, resolve vir à desforra com o padre do vilarejo que rouba toda a atenção da cena.


Por fim, “A ciumenta” surge e mostra que não é mole de coração, pois não perdoa nem mesmo a terceira geração futura do ex-namorado que lhe trocou por outra.


Deliciosas, irônicas, MINHAS ASSOMBRRAÇÕES escorregam por entre as páginas de mais um livro de Angela-Lago, por entre imagens de Dürer, Holbein e outros gravuristas do final da Idade Média que a autora, espirituosamente, modificou. Afora o projeto gráfico que faz o livro estremecer como se vivo estivesse nas mãos de quem lê, com muitos detalhes interessantes, a narração brinca a todo momento de evocar o leitor para dentro do texto e dos acontecimentos, com sutileza e agilidade.


* Resenha escrita para a Bibliografia Brasileira de Literatura Infantil e Juvenil 2009, da BIJ Monteiro Lobato – Secretaria de Cultura/PMSP.

15 de março de 2013

guardo segredo ou faço uma postagem?

Três ideias visuais que se apresentam


Pode uma imagem resenhar um livro de imagem ou, ao menos, desenhar seu perfil? Tentemos um diálogo quase mudo, à boca pequena. A extensão da fofoca: “Gossip”, de Norman Rockwell, na capa da revista The Saturday Evening Post, 6 de março de 1948. Afinal,


Foi em fevereiro de 2006... Tânia Piacentini presenteou os amigos do site Dobras da Leitura (Ano VI, n.30) com um artigo e o cartaz-publicitário do jornal Leia, apresentando uma galeria de autores em secretas conversas. Em sua coluna Alinhavos, explicava a amiga da Barca dos Livros, na nota de rodapé: “O cartaz está emoldurado na parede de meu escritório-biblioteca e muitos exemplares, encadernados, me trazem de volta pessoas, artigos, fotos e fatos, discussões, teorias e fofocas, vidas, a vida literária do país e do mundo. Retrato ainda vívido e substancial da cultura do fim da década de 70 e grande parte dos anos 80.” – Cultura também se fofoca.


Então, o livro de imagem de Renato Moriconi em parceira com Ilan Brenman, TELEFONE SEM FIO (Companhia das Letrinhas, 2011). Pintura ou argumento? Para cada um desenhar suas próprias relações...

Pode uma sequência de imagens resenhar um livro?

***

P.S.1. Das mais curiosas lições para escrever uma rádio-ficção, aprendi que não é importante revelar os segredos de um personagem: basta simplesmente contar ou indicar que uma pessoa os tem a fim de despertar o interesse da audiência. Com Harri Huhtamäki (YLE), 1994.

P.S.2. Você aí viu García-Marquez, Kafka, Borges, Clarice Lispector, Brecht, Shakespeare, Mário de Andrade, Simone de Beauvoir, Pessoa, Joyce, Beccket, Proust, Amado, Ernest Hemingway, Doris Lessing, M. Duras, Sartre e... novamente o Gabriel?

14 de março de 2013

recortes e citações poéticas para o alto levam

Três livros para jovens leitores, por Peter O’Sagae


POEPLANO, de Dilan Camargo (Projeto, 2010) com ilustrações de Ana Claudia Gruszynski. O título do poema “A musa e o mouse” bem resume o programa poético do autor em sua obra: novos contextos para uma voz que ressoa virtualmente através dos tempos de amor juvenil, dos primeiros queixumes às cantigas contendo estribilhos: “Você não me fere com a mão/ me fere com seu olhar de distração.” E o respiro que se ouve, e se sente, longo, discursivo, como se palavra fosse laço para prender os sentimentos de alguém. Versos que aqui recorto é língua que não estala na boca, apenas na tela: “Você é um voce/ sem circunflexo / um pequeno ome/ sem H e sem M/ um ser sem nexo”. Dilan propõe dilemas e fugas, entre viver e esperar, conversas de MSN e chamadas de SMS que se perdem, controle-delete.  Ao fim de 96 páginas, a dúvida: se haveria algo mais breve, que versos ninguém esquece?

“Minha vida é ler
o nome na lista
o sangue na pista
os cacos de vidro
os brancos do livro
a febre de sentir
a ânsia de partir.”

VAGALOVNIS, de Antonio Barreto (Autêntica, 2011) com colagens de Diogo Droschi. Já o sumário se apresenta como Embarques, Escalas, Paradas, Baldeações... e os poemas adentram o leitor na noite renovada dos velhos plenilúnios, entre palavras comuns e esdrúxulas que os sapos coaxam, palavra-valises que aqui e ali se soltam, embaralhadas com os vagalumes e alguns neologismos. Este é o jogo, palavra-colagem, “quem somos nós?/ quem seremos?” para cada um buscalevar(-se) entre objetos voadores nau-identificados com a própria viagem. A poética de Antonio Barreto é uma teia de aranha que me entrelaça com a força do surrealismo e a velocidade de uma surrealesma.

“quando será
o minuto elétrico
o hipotético
instante
milimétrico
em que esse
milagre poético
acontecerá?”

PÉS DE ARAGEM, de Marco de Menezes (Bipolar, 2007). O livro não pertence a um catálogo de literatura juvenil, mas os versos que contém são extremamente joviais, no sentido da leveza que inspiram. O eu-lírico atravessa a rua difícil, a viela enlameada, a passagem improvável, mas, desde o primeiro poema, desperta milonga, uma estrela turquesa, luas pequeninas e confessa com zelo e felicidade as cantigas que espia de cada janela entreaberta. Penso, qual poema dar a um jovem leitor? Marco de Menezes utiliza palavras e efeitos de cores, aliterações e cintilações fotográficas que entram pelos poros e ouvidos. A isso dá-se o nome de sinestesia, o que provoca insônia em olhares de pedra. E copio e colo inteiro, aqui um poema:
escritos a estilete

por cima das nuvens
uma luz mais branca
se inclinará rumo ao chão
de terra e pasto
até tocar a velha árvore
 
rente à árvore a luz
– filete de jasmim
em permanente branco –
soçobrará contida a cicatriz
o raso e o fundo
da figura irregular que abriga
desde a cor verde do passado
o teu nome e o meu
escritos a estilete

12 de março de 2013

histórias para colorir um pedaço de céu

Três livros de recontos, por Peter O’Sagae


Um mito bororo conta como um guerreiro chamado Japu foi transformado em pássaro para roubar as chamas do soberano sol. Ainda que trouxesse consigo o calor e a felicidade para a tribo, a ousadia custou-lhe muito: ao voltar à forma humana, compreendeu ele que o esforço da distância, fazendo o vento soprar sobre o tição, causticara seu belo rosto jovem para o pavor de todo o povo. Japu afastou-se da tribo para tentar viver, mas afinal suplicou ao pajé que o fizesse novamente pássaro de penas luminosas como fagulhas azuis e alaranjadas, e o bico negro com a ponta vermelha que faz lembrar a brasa incandescente...


Tal é a história que Myriam Fraga resgata, na moldura narrativa de uma noite de São João, através da voz de nhá Inácia, no livro O PÁSSARO DO SOL, com ilustrações de Anabella López (Girafinha, 2012), publicado anteriormente como um livro-disco A Lenda do pássaro que roubou o fogo (Edições Macunaíma, 1983), com gravuras de Calasans Neto.


Um fabuloso arqueiro encontrou uma pena dourada do pássaro de fogo na floresta. Ora, tivesse guardado segredo do feliz acaso, não se colocaria sob as ordens de um rei poderoso e bastante cobiçoso. Vieram a ele as provas e as desgraças em número crescente – e, em igual medida, a mágica que tudo transforma e salva, mas “em palavras não se pode contar e em contos de fadas não se pode encontrar...” Seis dos muitos contos compilados por Alexander Afanássiev são apresentados, tenha certeza, com a elegância da narração oral, em O PÁSSARO DE FOGO: contos populares da Rússia, com tradução de Denise Regina de Sales e imagens de Nicolai Troschinsky (Berlendis & Vertecchia, 2011), através de versões integrais, conforme a 2.ed. da obra publicada pelo pesquisador russo, em 1873. Os comentários finais ao livro pertencem a Flavia Moino e apontam para as particularidades da feitura de tão bela e breve antologia: em todos os contos, um voo, a sabedoria ou o canto de um pássaro faz voar a imaginação dos leitores. No entanto, não se surpreenda ao descobrir que o pássaro de fogo não toma parte efetivamente na narrativa que leva seu nome como título – é mais uma presença afetiva, ou algo apenas como uma metonímia dourada e ardente que encontramos, num reino distante, onde confabulam e cavalgam nossos desejos!


Reunindo poemas, aforismos, textos de caráter informativo e histórias,
O LIVRO DOS PÁSSAROS MÁGICOS, com organização e reconto de Heloísa Prieto, ilustrações de Laurabeatriz (FTD, 2011), remete o leitor ao colorido simbolismo que tingiu os pássaros entre diferentes povos e países, de longe e de perto.

8 de março de 2013

ciranda dos bichos

Três livros de May Shuravel


Já é quase madrugada.
Não há mais ninguém na rua, 
nem mesmo pra ver a lua, 
que está só e abandonada. 

Sem querer ficar sozinha, 
ela entra, lentamente, 
pelo vidro transparente 
da janela da cozinha.


Os livros da antiga coleção Viola Quebrada voam para cima de minha mesa e as páginas vão se abrindo lentamente, nesse ritmo cobalto, para fazer sonhar e cantar a memória das cantigas de roda. Eis um rato desafinado que passa atrás de um pedaço de pão bolorento, fazendo coro com três formigas: “A barata diz que tem/ sete saias de filó...” A lagartixa estica a língua e cantarola: “A barata diz que tem/ um anel de formatura...”


Pouco a pouco, a casa se enche de muita música!

Pois esta era a proposta de May Shuravel, ao criar uma delicada moldura narrativa para cantigas tradicionais brasileiras. A coleção publicada originalmente nas Paulinas, em 2000, passou a integrar o catálogo da Salamandra como Ciranda dos Bichos, em 2005. Cada livro apresenta uma história inventada pela escritora e ilustradora, mais a letra e a partitura da respectiva cantiga. Além de É MENTIRA DA BARATA!, o pequeno leitor e ouvinte pode conhecer a ladainha da gatinha parda “que em janeiro me fugiu” com o livro CADÊ MARICOTA? Você sabe, você sabe, você viu?


Tem também O PAPO DO SAPO que conta e encanta sofrimentos do verde cururu na beira do rio. Num bonito espelhamento entre gente e bicho, vai segredando o narrador:

Não é frio que o sapo sente
quando solta o vozeirão. 
Ele canta, simplesmente, 
porque sente solidão. 

Quem sente frio é Seu Bento, 
sem casaco nem sapato, 
cantando, ali ao relento, 
a moda maluca do sapo. 

Josefina, na janela, 
escutando a cantoria, 
logo, logo, desconfia 
que alguém canta pra ela.


Ó, maninha, May Shuravel... Quanta rima singela, rima rica, intercalada, que vai da mesa à porta e à janela, vai à lua, Argentina, Rio de Janeiro, Fortaleza e já volta nos brincos da intertextualidade. E a resenha assim termina, com licença, andando eu vou...