17 de abril de 2010

A densidade plástica da palavra, em metamorfoses sonoras, é artesanal e sorrateiramente trabalhada pelas paronomásias (nossos vulgares trocadilhos), consideradas até mesmo “indignas de um estilo escorreito” (Pignatari, 1974: 108). A semelhança fônica e/ou mórfica talvez seja o espinho da fala ou aspecto mais difícil de manter entre as rosas e os rasos de uma língua à outra. Mas, sem falhas em sua formação acadêmica, a velha Falsa Tartaruga é quem mais parece entender do riscado: teve lá suas aulas de Belas Tretas e Estrilo, além de Estudos Histéricos dos fatos antigos e modernos, etc.


No original em inglês, o exemplo mais-que-perfeito parece mesmo ser a correspondência sonora entre as palavras [tail] e [tale], de modo anatomicamente ajuizado como o conto do rato torna-se seu próprio rabo. Como calda escorrendo pela página, o poema-cauda alonga-se diante do olhar do leitor, expectador da superfície branda do livro, ao mesmo tempo em que se configura o longo conto ante à percepção da ouvinte Alice. Ocorre um “isomorfismo olho/ouvido” (Pignatari, 1974: 82), ou seja, uma dupla paronomásia de plasticidade sonora e visual. Na versão original manuscrita, o escritor inglês teve caprichos de ir retorcendo o vasto rabo — e o último verso obriga o leitor a virogirar o livro. Alguém aí já considerou as imagens cinéticas do livro de literatura para crianças e não-crianças? Nas edições impressas cuidadosas, o gracejo se apresenta sinuosamente em linhas e tamanhos tipográficos que vão, pouco a pouco, diminuindo até o fim. Mas por que não é assim que está em certos livros editados por aí?

Seja lá como for, outra mania que Lewis Carroll não esconde, ao lidar com a plástica da palavra, é o uso do portmanteaux, ou palavras-valise. Como diria o Dodô, a melhor maneira de explicar isso é mostrá-lo. Na tradução de Uchoa Leite, a professora da Falsa Tartaruga era uma verdadeira Torturuga. “Mas por que Torturuga, se ela era uma tartaruga?”, perguntou Alice. “Nós a chamávamos de Torturuga porque aprender com ela era uma tortura”, respondeu irritada a Falsa Tartaruga. “Na verdade você é bem obtusa, hein?” (1977: 108). Na recriação de Nicolau Sevcenko, tratava-se de uma Tetrarruga “porque, sendo uma tartaruga velha, tinha quatro rugas no pescoço, é lógico” (1988: 91).


Na segunda história, Através do espelho e o que Alice encontrou lá, escrita em 1871, Lewis Carrol inclui um poema chamado “Jaguadarte” (tradução de Augusto de Campos). Entre outras coisas, Alice encontra o poema e, intrigada, contempla suas linhas como se escritas em uma língua que não se conhece. Isso porque as letras, palavras e frases que estampam o texto estão todas invertidas – plasticamente espelhadas – e é esta mesma visão que o leitor tem. Até que lhe ocorre uma idéia luminosa: como se trata de um livro do mundo dentro do Espelho, colocando-o diante de outro espelho, as palavras retomam a ordem habitual. Então, poderá ler:

Era briluz. As lesmolisas touvas
Roldavam e relviam nos gramilvos.
Estavam mimsicais as pintalouvas
E os momirratos davam grilvos.


Ora, são dois níveis de distorção: primeiramente, ótica e, então, sonoramente porta-mantimentosa. A cena parece ser facilmente bucólica para decifrar as palavras intrincadas... Persistindo a dúvida, favor consultar o muito habilidoso Humpty Dumpty ;-) é o ovo quem ajuda Alice a sacar-rolhas do signo-ficante de cada palavra. Ele realmente se parece com um espeto desperto.

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