Apregoadas são as guerras
entre França e Aragão!
Ai de mim que já sou velho,
as guerras me acabarão...
Eis que aí a rima repica como um coração, aflito tambor, e soe talvez a voz (que narra e passa verso a verso) uma flauta. No fundo do peito, um medo — um rei a perder o reino, dararão, na indesejada derrota porque não tem filho varão... Eis que a filha mais moça, cabelos compridos, olhos claros, mãos pequeninas, pés delicados, com toda a resolução, brada, venham armas e cavalos, e vai à marcha do batalhão...
Esta famosa xácara espalha-se por muitas tradições da narrativa popular em verso, adaptado ao cordel brasileiro ou ainda na forma de rimance tão ao gosto medieval e nordestino. A história possui três momentos definidos, (1) iniciando-se com a lamentação do rei e a decisão da donzela que seguirá para guerra, sob as vestes de homem; aí os diálogos encenam a discussão entre pai e filha; (2) ao fim da batalha, vitoriosos, os cavaleiros descansam ao paço de um jovem príncipe que, torturado pela incerteza e a visão dos olhos do companheiro (que são de mulher, de homem não), aconselha-se e improvisa ardis para conhecer a verdadeira identidade do ‘amigo’; após várias tentativas, a jovem desnuda-se frente ao companheiro, sem resistir ao amor, revelando suas formas de donzela, mas (3) chega um pajem com uma carta com notícias de que o velho rei está a finar e, de volta à casa, o pai dá sua benção ao par.
O tema verdadeiramente universal da donzela que vai à guerra ouvi, em 1992, pela primeira vez, rodando “os olhos tristes da fita” de uma gravação doméstica em áudio k7, num registro do espetáculo Prazeres do Baile, de música profana brasileira dos séculos XVIII e XIX, produzido por Anna Maria Kieffer, Rodolfo Nanni e o Confraria - Conjunto de Música Antiga, apresentado, em 1982, no Teatro Castro Alves de Salvador. A história me apaixonou. Passaria um ano com a melodia repetindo apenas em minha cabeça, pois havia o pavor justificável de perder a gravação por qualquer acidente até que viesse a oportunidade de encaixar a narrativa em um dos programas de rádio que assinei. No balanço do balaio. Chegava-me também às mãos, antecipadamente, o livro do escritor português António Torrado, com ilustrações de Daisy Startari (Vale Livros, 1994), em uma forma adaptada sobre os versos coligidos por Almeida Garret. Fiz lá uma colagem sonora de tempos e espaços, voz cantada, voz falada... Pelos tempos que também andei noutras guerras, em 2002, subindo e descendo o Pelourinho, encontrei o CD do Quarteto Cantares: Romances tradicionais na Galícia e na Bahia. Eia, ela, em outras versões, donzela em som estéreo. Por fim, no dia 11 de março de 2010, no Teatro Anchieta de São Paulo, a estreia do espetáculo Donzela Guerreira, com o grupo Anima. Paixão contínua!
Grupo Anima, na formação do espetáculo Donzela Guerreira, inspirado pelo livro de Walnice Nogueira Galvão (Senac, 1998): Gisela Nogueira (viola de arame), Luiz Fiaminghi (rabecas), Marília Vargas (soprano), Marlui Miranda (voz e instrumentos indígenas), Paulo Dias (percussão afro-brasileira), Sílvia Ricardino (harpa) – e minha vizinha!, Valéria Bittar (flautas doce renascentista, barroca e indígenas brasileiras). No próximo vídeo, segundo e terceiro entrechos da xácara, conforme uma versão baiana do romance, com um fragmento de Grande sertão: veredas, próximo ao final do espetáculo.
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