Um velho com guarda-chuva e gaivotas numa ilha deserta.
Um velho com guarda-chuva, gaivotas e inventos numa ilha deserta. Um velho com guarda-chuva, gaivotas, inventos e uma casa numa ilha deserta. Um velho com guarda-chuva, gaivotas, inventos e uma casa cheia de tralhas e histórias numa ilha deserta, talvez não tão deserta assim, num ponto distante do oceano... Como vou para lá? Com um mapa sem estradas, com um piscar de olhos, com a memória ou com um livro de imagem? Pois agora, último domingo de agosto, viajo com O BARCO DOS SONHOS, de Rogério Coelho (Positivo, 2015).
Primeiramente, um pressuposto teórico. Um livro de imagem é um texto visual com uma possibilidade de se multiplicar em dobras, viagens, leituras, acréscimos, interpretações, reticências... cheios e vazios, vazados e significados, preenchimentos. E como o mar tem vagas, foi voga a partir da década de 1980 as ideias e a distinção de Denise Escarpit a respeito da leitura enumerativa e a leitura de construção. O leitor e a leitura se reconhecem e, abraçados, caminham juntamente a partir da percepção e da investigação de elementos isolados de um texto, passando, por exemplo, a recuperarem cooperativamente os nexos lógicos-causais, até o estabelecimento de elos inferenciais mais sutis, memórias e aprendizagens outras que pertencem ao tecido vivido pela criança e pelo adulto que, enfim, se mesclam ao ato de ler entre o que está aparente (matéria sensível) e o que lhe é ausente (inteligível), mas presentes. Em outras palavras, frente a um texto verbal, livro ilustrado ou texto visual, gradativamente, eu-leitor me constituo ao construir a história narrada e, simultaneamente, reconstruindo a viagem posta.
Por isso, é tão fácil resumir um livro de imagem. Por isso também, é pessoal (e intransferível) a leitura mais ampla que um livro de imagem possa desdobrar. Por isso ainda, diria que a leitura é uma aventura perigosa. O leitor pode jamais retornar...
Dentro da casa da ilha distante que Rogério Coelho mostra, um velho dorme em um quarto atulhado de coisas. O sol da manhã vara a veneziana fechada e no parapeito, no lado de dentro da janela, uma inesperada gaivota vejo dormindo. A ave acorda. O velho acorda. O velho tem aspecto de histórias como se fosse Dom Quixote ou Santos-Dumont, não sei se são seus olhos, ou são seus óculos. Algo é. Figura magra, elegante, cabelos brancos, bigodes, casaco e chapéu entre uma gaiola sem pássaro e um ventilador desligado. Depois de pronto, ele abre a porta... e ali está o mundo na borda da ilha entre voos e ventos.
Deixemos a riqueza dos detalhes da ilustração, para seguir um fio de história. Ao longe, ele descobre uma mensagem dentro de uma garrafa que se agita e se agiganta nas ondas do mar através da sua luneta. Como sabemos, a mensagem de algum náufrago. Ou não. Era apenas uma folha de papel em branco, onde ele desenhará um antigo galeão, o barco dos sonhos de qualquer menino. Trabalho concluído, o velho arremessa de volta a garrafa para o mar, para um destino desconhecido. Anoitece na ilha.
Para onde eu-leitor vai na próxima virada de página? Segundo pressuposto da viagem: atenção ao tempo-espaço, à nova cor dominante, à geometria do cenário, ao clima atmosférico, aos prédios, aos telhados, às antenas de televisão debaixo da chuva fria, à quantidade de janelas, à única casa da vizinhança, ao personagem que na soleira da porta encontra uma carta, ao próprio requadro branco...
O jogo da narrativa não é apenas encontrá-la no emaranhado de códigos e linguagens, mas decifrar o sentido do discurso entre figuras e ações. Uma história, pensamos, caminha sempre para frente. Porém, a montagem às vezes nos engana.
É fácil acreditar que o desenho do velho alcançou o menino – mas o que pensar se a narração adiante nos levou para trás? Ah, pobre cronotopo bem comportado! Como na poesia, os valores do tempo e do espaço podem ser repropostos em novos vetores. Desse modo, o tempo se espacializa e é, então, fragmentado; o espaço é trabalhado como matéria elástica e começa a sofrer uma deformação, uma curva talvez.
É difícil acreditar?
Eu acho que esse velho tem um pouco de Einstein, ou Fernando Pessoa.
A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ver quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou [...]
magnífico texto! te sigo e voltarei para ler por aqui. abraço.
ResponderExcluirhttp://mentesinfantisfuturodapaz.blogspot.com.br/
Quando eu crescer...
ResponderExcluirQuero escrever bonito assim! Bjs