A primeira publicação autoral independente que conheci foi um pequeno livro azul clarinho, reprodução em xerografia, tiragem: 30 exemplares assinados pelo artista gráfico e ilustrador Nik Neves – ACQUA ALTA é um livro de imagem produzido em 2013, contendo uma das mais belas narrativas visuais que tenho visitado
– e poderia sempre repetir essa viagem às suas páginas, acompanhado, curiosamente, com o som do grupo de rock e neofolk italiano Calle della Morte, em especial o álbum Gente di malaffare (2005).
A ilustração foi realizada digitalmente, mas a impressão em preto provoca uma sensação de aguada de nanquim e o azul do papel que realça a fria ambientação das sombras da cidade de Veneza, com seus canais abraçando antigos prédios com pés na água, num labiríntico jogo de esquinas e histórias que por lá se perdem... É necessário concordar que a Sereníssima cidade realmente são duas; existe a Veneza dos turistas e dos apaixonados, dos passeios de gôndola, das construções em claros e escuros de rosa, vermelho, bege, tons de terra, amarelos variados e mármore, janelas verdes e brancas guarnições, uma cidade feita de máquinas fotográficas e selfies em suas pontes, lojas, máscaras, livrarias, cafés e muitas vozes; mas há a outra cidade que se perde na presença da outra – é a Veneza do silêncio.
A narrativa de Nik Neves orienta-nos por entre a vida agitada e o olhar encontra a personagem de uma menina de cabelos escuros e curtos, desacompanhada dos pais ou de qualquer outro adulto. Ao entrar em uma loja, ela coloca uma máscara sobre o rosto e o leitor, por um instante, vê através de seus olhos, seu ponto de vista. Tal recurso tão simples, comum e caro ao antigo cinema, toma a função de calar os ruídos da cidade e abrir a segunda parte da história. Em frente a um espelho, os gestos da menina tornam-se mais amplos, como se, de repente, sob as asas do disfarce, ela pudesse viver solitariamente o sonho das identidades ocultas pelas ruas da cidade...
Livre, correndo, a menina encontra a outra cidade no silêncio de Veneza. Penetra, então, na estreita Calle della Morte e, dobrando o cotovelo de um L, chega a um paço onde não há ninguém, ninguém vivo ou lendário, apenas uma pomba sobre o ladrilho de cimento secular... Contudo, alguém mais observa a menina!
A terceira parte da história começa com a resolução do suspense, mas introduzindo o clima de mistério com um personagem mascarado e a fantasia de arlequim. A partir de então, somos obrigados a seguir... afogando em sonhos – essa espécie de acqua alta, maré de outono que transforma nosso caminhar por entre os braços e os palácios de Veneza...
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É possível acompanhar toda a aventura de ACQUA ALTA no espaço Inutil Projetc, juntamente a outros trabalhos de Nik Neves.
O que se destaca para a leitura de quadrinhos e dos livros de imagem para crianças, essa espécie de livros ilustrados, é a capacidade do artista em articular rapidamente as cenas em uma sequência bastante clara, propondo soluções de continuidade entre uma imagem e outra, sem distrair o seu leitor – isto é, a história é apreendida pela ação da personagem, o cenário que se enriquece pouco e pouco, sem o desconforto de tentativas frustradas de “adivinhar” as relações de causa/efeito... O tempo fragmentado, com Nik Neves, vai se constituindo em um continuum por vezes mais iluminador e mágico do que vem acontecer em certas narrativas de literatura infantil.
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