17 de abril de 2010

oqu'éque ali se esconde

por Peter O'Sagae


Lewis Carroll
trad. Sebastião Uchoa Leite
Aventuras de Alice
no país das maravilhas,
Através do espelho e
o que Alice encontrou lá
Summus, 1977

ISBN 9788532300447
21 x 14 cm 280p.


Nalgum lugar lique Alice no país das maravilhas “é o mais estranho e fascinante livro para crianças jamais escrito”. Fiquei estoupeirado! Que grandefeito do livro, se jamais escrito, qual o leitor apto a comentá-lo? O susto esvaiu-se ligeiro, por sorte, ao lembrar-me de que realmente alguém pudera escrever o livro e mais alguns outros, Lewis Carroll! Manuscritas e ilustradas originalmente pelo próprio autor, as páginas de Alice's Adventures under Ground foram presenteadas à menina Alice da família Liddell, anos antes de sua primeira publicação em 1865. Assim temos ou podemos ter em mãos um livro certamente comentável e recomendável, o que talvez fosse o mesmo que dizer um livro altamente comestível. Pois: o que valeria um livro sem doçura ou doses de loucura?

Contudo, o elemento estranho e fascinante que ali se esconde tem outra qualidade para alguns leitores; não todos, é verdade. Há boatos espalhados nas caixas da teoria de que os livros de Alice vieram afastando-se do telescópio da criança, abaixo do microscópio do leitor adulto. E o qüiproquó da história: “só assim é, se lhe é assado”. E bem sabemos que um ovo só se parece com um espeto, quando e somente quando, a crítica quer. E muitas vezes ela consegue! Brejeiramente ou não, impondo a toda obra um regime de leitura que bem poderia ser chamada de ‘decodificação mecanicista’, em que o menor indício logo é senha para algo a ser (dês)prendido e revelado... Sabe comé uma corrida de comitê: um grupo de comentaristas molhados num círculo vicioso traçado no chão. A forma exata não tem importância, explicou o Dodô. Também não é preciso contar: um, dois, três e já! Todos começam a correr quando querem. E param quando querem, de modo que é nada fácil saber quando a leitura termina. À qual conclusão se quer secar?

Do lago dos livros de Alice, ora, foram pescadas já diversas interpretações alegóricas. Com um anzol social, chegam à tona botinas biográficas, extratextos históricos e histéricos, sem comprovação necessária. As obras de Carroll também emergem, quase sempre, com uma fisgada psicanalítica. É muito aquilo que se puxa. O perigo: “tudo pode ser suposto, quando se parte do princípio do sentido oculto das representações”, escreve Sebastião Uchoa Leite, no estudo introdutório que antecede sua tradução. “É realmente medonha”, murmurou Alice, “a mania que essas criaturas têm de discutir. É de enlouquecer qualquer um!”


Outros críticos, conscientes da armadilha que é o estudo da intencionalidade de uma obra, esboçam uma aproximação com o trabalho de L.C. através do que o próprio texto tem a oferecer em sua superfície. Porque menos enlouquecidas do que uma Lebre de Março, são as criativas apropriações de certas referências e estruturas lingüísticas — e a conseqüente desapropriação de seus sentidos originais. Atenção para um conjunto de expressões populares e idiomáticas inglesas, das nursery rhymes e outras cantigas tradicionais, dos poemas encontrados nas velhas cartilhas e de célebres escritores da época vitoriana. Ao ritmo da intertextualidade, impõe-se um jogo que abriga e obriga as palavras à transformação. Creia: instaurando novas proposições, o efeito de velhas palavras só poderia ser cosmético! Surgindo do caos, uma palavra desdobra-se tríplice entre suas qualidades materiais (sonoras e gráficas) e seu poder de invoca-ação imagética.
A densidade plástica da palavra, em metamorfoses sonoras, é artesanal e sorrateiramente trabalhada pelas paronomásias (nossos vulgares trocadilhos), consideradas até mesmo “indignas de um estilo escorreito” (Pignatari, 1974: 108). A semelhança fônica e/ou mórfica talvez seja o espinho da fala ou aspecto mais difícil de manter entre as rosas e os rasos de uma língua à outra. Mas, sem falhas em sua formação acadêmica, a velha Falsa Tartaruga é quem mais parece entender do riscado: teve lá suas aulas de Belas Tretas e Estrilo, além de Estudos Histéricos dos fatos antigos e modernos, etc.


No original em inglês, o exemplo mais-que-perfeito parece mesmo ser a correspondência sonora entre as palavras [tail] e [tale], de modo anatomicamente ajuizado como o conto do rato torna-se seu próprio rabo. Como calda escorrendo pela página, o poema-cauda alonga-se diante do olhar do leitor, expectador da superfície branda do livro, ao mesmo tempo em que se configura o longo conto ante à percepção da ouvinte Alice. Ocorre um “isomorfismo olho/ouvido” (Pignatari, 1974: 82), ou seja, uma dupla paronomásia de plasticidade sonora e visual. Na versão original manuscrita, o escritor inglês teve caprichos de ir retorcendo o vasto rabo — e o último verso obriga o leitor a virogirar o livro. Alguém aí já considerou as imagens cinéticas do livro de literatura para crianças e não-crianças? Nas edições impressas cuidadosas, o gracejo se apresenta sinuosamente em linhas e tamanhos tipográficos que vão, pouco a pouco, diminuindo até o fim. Mas por que não é assim que está em certos livros editados por aí?

Seja lá como for, outra mania que Lewis Carroll não esconde, ao lidar com a plástica da palavra, é o uso do portmanteaux, ou palavras-valise. Como diria o Dodô, a melhor maneira de explicar isso é mostrá-lo. Na tradução de Uchoa Leite, a professora da Falsa Tartaruga era uma verdadeira Torturuga. “Mas por que Torturuga, se ela era uma tartaruga?”, perguntou Alice. “Nós a chamávamos de Torturuga porque aprender com ela era uma tortura”, respondeu irritada a Falsa Tartaruga. “Na verdade você é bem obtusa, hein?” (1977: 108). Na recriação de Nicolau Sevcenko, tratava-se de uma Tetrarruga “porque, sendo uma tartaruga velha, tinha quatro rugas no pescoço, é lógico” (1988: 91).


Na segunda história, Através do espelho e o que Alice encontrou lá, escrita em 1871, Lewis Carrol inclui um poema chamado “Jaguadarte” (tradução de Augusto de Campos). Entre outras coisas, Alice encontra o poema e, intrigada, contempla suas linhas como se escritas em uma língua que não se conhece. Isso porque as letras, palavras e frases que estampam o texto estão todas invertidas – plasticamente espelhadas – e é esta mesma visão que o leitor tem. Até que lhe ocorre uma idéia luminosa: como se trata de um livro do mundo dentro do Espelho, colocando-o diante de outro espelho, as palavras retomam a ordem habitual. Então, poderá ler:

Era briluz. As lesmolisas touvas
Roldavam e relviam nos gramilvos.
Estavam mimsicais as pintalouvas
E os momirratos davam grilvos.


Ora, são dois níveis de distorção: primeiramente, ótica e, então, sonoramente porta-mantimentosa. A cena parece ser facilmente bucólica para decifrar as palavras intrincadas... Persistindo a dúvida, favor consultar o muito habilidoso Humpty Dumpty ;-) é o ovo quem ajuda Alice a sacar-rolhas do signo-ficante de cada palavra. Ele realmente se parece com um espeto desperto.

Além das coisas que Alice viu, em suas dulcaloucas aventurosas, as imagens que Alice fatalmente não viu (ou que invoca sobre si mesma) são as mais surpreendentes. Que outra personagem poderia dizer: “Só queria saber o que aconteceu comigo. Quando eu lia contos de fadas, pensava que essas coisas jamais aconteciam, e cá estou eu metida numa dessas histórias! Deve haver algum livro escrito sobre mim, deve haver!” A menina sabe que não deve, nem poderia, se confundir com as personagens de narrativas tradicionais, pois jamais as vira transformando-se tanto quanto ela. Muito tímida sentiu-se ainda mais Alice, sua própria (auto-)imagem ali se diminuindo, face à temida pergunta da Lagarta: Quem é você? “Eu... eu... nem eu mesmo sei, senhora, nesse momento...” Tempos depois, passando para o outro lado do espelho, a dúvida e o medo: “E agora, quem sou eu? Eu quero me lembrar, se puder.” Qual imagem sem passado, ela precisa lembrar-se quem era, a qualquer instante, para não esquecer quem não foi. O que é que Alice esconde?
Igualmente ambígua, tudo e nada, afirmação e negação, ilusão e palavra deceptiva, signo e anti-signo, a anti-personagem assemelha-se a boneca que a criança destrói na ânsia de descobrir o "dentro" ou o "avesso", e experimenta a decepção de se defrontar com o vazio do "dentro", verdadeira gargalhada irônica que aponta com o dedo o sonho louco do "fora", enganosa vestimenta de um nada. (Segolin, 1978: 102)
“Estou decidida a me lembrar.”
“É inútil”, responderá a ela Tweedledum páginas adiante. Parte de um sonho, parte de uma imagem de um sonho — à beira do esquecimento. “Você sabe muito bem que você não é real.”

16 de abril de 2010

Alice, o filme, no livro

Imagine um gato saltando das dobras de um livro...



Dobras da Leitura recebeu...
Alice no país das maravilhas: guia visual do filme de Tim Burton,
por Jo Casey e Laura Gilbert, trad. Ana Luisa Martins (Caramelo, 2010).

Enigmas para Alice

por Peter O’Sagae


Raymond Smullyan
trad. Vera Ribeiro
il. Greer Fitting
Alice no país dos enigmas
Jorge Zahar Editor, 2000

ISBN 9788571105508
192p.


Para quem sente saudades do país das maravilhas, Raymond Smullyan faz um convite e tanto, com boas doses de desafio e divertimento. Publicado na comemoração dos 150 anos de nascimento de Lewis Carroll, em 1982, o livro Alice no país dos enigmas foi convincentemente escrito ao gosto carrolliano: os personagens agem e falam como nas obras originais, envolvendo Alice e o leitor em problemas de natureza puramente lógica, através de doze capítulos com muitos trocadilhos e despistes metalingüísticos, por vezes, mágicos e metafísicos...

Imagine um dia fresco de verão: o Rei pede à Rainha de Copas para preparar algumas tortas saborosas. Mas, como fazer as tortas, se a geléia (que é a melhor parte!) foi roubada? Quem roubou? Os suspeitos são a Lebre de Março, o Chapeleiro Louco e o Leirão. Todos três imediatamente vão a julgamento: quem roubou a geléia, ora essa, fora a Lebre de Março, o Chapeleiro Louco ou o Leirão. Como descobrir o culpado? (Essa e as outras soluções dos 88 enigmas estão no final do livro.) Por fim, encontram a geléia — mas descobre-se que também roubaram a farinha, o açúcar, o sal, a assadeira, o livro de receitas, a manteiga, os ovos... E a pimenta!!! Outros personagens são levados à corte, cada suspeito faz sua declaração e assim começam as confusões no país das maravilhas.

Depois, Alice passeia com a Duquesa que lhe abraça e finca o queixo pontudo no ombro da menina, segredando: metade das criaturas daqui são loucas! Resta descobrir quem... E vai se passando a mesma coisa com o Grifo, a Falsa Tartaruga e o Rei: é preciso sempre adivinhar, descobrir, decifrar — como promete a quarta de capa — problemas lógicos matemáticos, adivinhações deliciosas, charadas mirabolantes, enigmas diabólicos, desafios tentadores. E mesmo que você não tenha talento ou paciência, o que vale nessa leitura é também avançar páginas e alcançar a segunda parte do livro: A Lógica do Espelho.

Alice é, então, posta à prova pela Rainha Vermelha e a Rainha Branca, em uma verdadeira aula de malabarismos matemágicos. Isso mesmo: matemágicos, pois o que importa não são os números, mas exatamente o abracadabra de cada palavra na enunciação do problema. “Você sempre deve contar tudo, porque tudo conta.” A menina também encontra os gêmeos fofuchos Tweedledee e Tweedledum. Porem, sem o nome bordado em seus colarinhos, como já acontecera no outro livro. Então, quem é quem? É bom lembrar que nem tudo o que é parecido é, fatalmente, similar!

E Humpty Dumpty está de volta, sentado no mesmo lugar do mesmíssimo muro com suas tiradas peculiares. Deliciosamente, paradoxos ele oferece a Alice — ou seja, perguntas que não têm resposta, mas que dão muito que pensar. De repente, a descoberta mais sábia e bela: que não é necessário ter e darmos respostas para tudo, mas enovelar o pensamento para despertá-las em nós ;-) Humpty Dumpty é um dos argumentadores mais argutos que conheço, diz o Rei Vermelho, é capaz de convencer praticamente qualquer um de praticamente qualquer coisa, quando se dispõe a fazê-lo!

Por fim, as aventuras de Alice enredam-se no grande enigma da filosofia moderna e na teoria dos ‘mundos possíveis’, retomando atentamente a passagem do livro de Carroll em que o Rei Vermelho dorme e sonha. Sonha com uma menina chamada Alice e, caso acorde, Alice deixaria de existir, puff!, feito a chama de uma vela. Agora, ficamos sabendo que o Rei Vermelho também encontrou Alice dormindo... e, sonhando com ele, de tal modo que, acordando, era o rei que era uma vez feito vela!

E, você já sonhou que você é um sonho? Como diz Smullyan, “Este livro, tal como as Aventuras de Alice no país das maravilhas e Através do espelho, é realmente para leitores de todas as idades. Não quero dizer com isso que todo ele seja para qualquer idade, mas que, tomando uma idade qualquer, parte dele é para essa idade.”


ENIGMA 62
« — Se um carrilhão leva trinta segundos para bater seis horas, quanto tempo leva para bater doze?
— Ora, sessenta segundos, é claro! — exclamou Alice. Oh, não! — percebeu, de repente. Está errado! Espere um minutinho, eu lhe darei a resposta certa!
— Tarde demais, tarde demais! — exclamou a Rainha Vermelha, triunfante. Uma vez que tenha dito uma coisa, você nunca pode se desdizer!
Qual é a resposta certa? »

Diálogos com Alice

Dobras da Leitura recebeu...
[textos condensados a partir do catálogo e do press-release]



A VERDADEIRA HISTORIA DE ALICE, de Rita Taborda il. Thais Beltrame (Girafinha, 2008). Esta Alice bem que tentou falar a língua difícil dos adultos. Mas aquilo não fazia muito sentido. Pediam-lhe que não se pendurasse nos braços da cadeira. E cadeira tem braços? Diziam-lhe que não riscasse as pernas da mesa da sala. E por acaso as mesas têm lá pernas? A língua dos adultos precisava mesmo ser melhorada... Esta é a verdadeira história da pequena Alice, uma miúda que ainda não era uma pessoa grande, mas já era, isso sim, uma grande pequena pessoa.


ALICE NO PAÍS DA POESIA, de Elias José, il. Taísa Borges (Peirópolis, 2009, fora de estoque). No primeiro poema do livro, Alice é "flagrada" no momento em que descobre o mundo das palavras, enquanto vivia no país das maravilhas. Esse é o ponto de partida para 33 poemas repletos de encantamento: o leitor segue em companhia de Sherazade, Peter Pan e Dom Quixote, além de um séquito de fadas e feiticeiras, duendes e sereias, reis e rainhas, príncipes e princesas, pássaros e cavalos mágicos. As ilustrações de Taisa Borges se encarregam de estilizar esses sonhos de criança.



LEWIS CARROLL NA ERA VITORIANA: outras histórias de Alice, de Kátia Canton, il. Adriana Peliano (DCL, 2010). O livro resgata o contexto de criação das narrativas de Alice, na segunda metade do século XIX, revelando os costumes de época e como Lewis Carroll criou seus personagens, em um momento de paz e prosperidade na história inglesa — a Era Vitoriana. O leitor saberá quem foi a Rainha Victoria, o que ela fez em benefício ao povo inglês e como tudo isso se relaciona com as histórias de Alice e a vida do autor, cujo nome verdadeiro era Charles Dogdson. Com colagens digitais de Adriana Peliano, a obra faz parte da coleção Arte conta História.

11 de abril de 2010

por um Olhar Lúdico na prática

por Peter O'Sagae

De Maria Zilda da Cunha,
Na tessitura dos signos contemporâneos: novos olhares para a literatura infantil e juvenil (Humanitas e Paulinas, 2009) 232p.


Da apresentação:

O trabalho tece reflexões sobre a literatura para crianças e jovens, como fenômeno estético, considerando sua complexidade e intrínseca relação com a cultura, com a história e a evolução social. Perspectiva que a compreende neste mundo representado por novas tecnologias comunicacionais e mediado por novas formas de produção de linguagem. Recorrendo às categorias cognoscitivas, apresentadas por Peirce, e incorporando estudos sobre as matrizes de linguagem e pensamento de Lucia Santaella, estudam-se três vetores de produção de linguagem: modo artesanal; processos mediados pela tecnologia; produções derivadas de matrizes numéricas. Nas sendas do literário, miram-se correlações da estética com a ética. O diálogo intertextual se faz presente em todo o trabalho e amplia-se na análise da tessitura dos signos em vozes e olhares da África com Octaviano Correia em seu livro O país das mil cores e em treze obras de Angela-Lago, em suas artes e experimentações literárias, no livro e na hipermídia.
Pois bem: tomando partido da natureza sempre cambiante e híbrida dos signos — sonoro visual e verbal —, Maria Zilda da Cunha propõe-se a observar as múltiplas e mútuas aprendizagens entre códigos e linguagens, o que a faz ampliar e definir o campo literário infantil contemporâneo de sua investigação, atenta [1] ao projeto artístico, à obra, à recepção criativa e [2] à própria transitoriedade dos suportes materiais da literatura. Essa constante em seus trabalhos é assim sintetizada pela pesquisadora (2007):
Antes da escrita, a literatura — arte da palavra — era indissociável da voz, da música; com a invenção da escrita e depois com o advento dos meios técnicos de impressão, ganha visualidade e seu desempenho nas páginas explora os tipos gráficos para a criação de sentidos; convoca para seu nicho de criação a imagem; hoje, com as novas tecnologias hipermidiáticas, encontra terreno fértil para novas experimentações e desenvolvimento.
Além de estabelecer e observar esses três paradigmas, o que realmente vem interessar à autora está nas fronteiras movediças e no adensamento de códigos que perpassa a obra de Angela Lago, dialogando com os contos da tradição oral na cultura livresca; olhando o livro na travessia das imagens e no entrecruzar de diferentes mídias; e ‘animando-se-aninhando’ nas sugestões dos ambientes virtuais.

Em todos os momentos desse percurso, Maria Zilda salienta aspectos que agenciam novos patamares de leitura na literatura para crianças, enquanto objeto de conhecimento e arte. Para isto, as categorias peirceanas sustentam o inquérito e as respostas de seu trabalho, numa dimensão onde os signos visuais, verbais e sonoros não mais se submetem a uma única lógica ou forma de compreensão (a lingüística, por exemplo, dominante em outras abordagens), nem percebidos de maneira estática, nem estratificados para a decodificação imediata. Conseqüentemente, exige-se uma conduta desentranhada dos condicionamentos pelo querer mais rápido e fácil, porque a leitura resultará em um trâmite de significados mais lúdico sobre a literatura infantil.

[continua...]

Da Cunha (2002: 43, tese) explica que
todo pensamento, toda ação e toda concepção humana é um processo de semiose — um diálogo entre signos. A filosofia de signos de Peirce é uma filosofia em que: não existem princípio nem fim absolutos; toda interpretação atribui novos significados aos anteriores; o mundo dos signos é uma continuidade, — um processo histórico; o mundo é um texto, onde todo fenômeno significa e, portanto, é para ser interpretado; a semiose é um processo de interpretação criativo.
Esta interpretação criativa é posta em meta pela autora, através da apreensão do jogo de interpretantes que se corporifica na produção contemporânea da literatura para crianças e jovens — ressalvando-se, nas palavras de Maria Zilda (2009: 66-67),
que interpretante não é o intérprete: o interpretante é o efeito interpretativo que o signo produz em uma mente [...] Nós, no papel de leitores, ocupamos a posição lógica do interpretante dinâmico, em nosso corpo a corpo com a obra — os efeitos que o signo produziu em nós como intérpretes.
Para evidenciar como distintos embates interpretativos vêm constituídos nos próprios livros de literatura para crianças, conforme a escolha e as decisões de seus criadores, a pesquisadora oferece um gradiente semiótico que explicita o pêndulo de um uso mais convencional dos signos ao jogo estético com os leitores — em uma seqüência de exemplos, movimentando-se [...]

[1] pela força da contigüidade mais simples na relação texto-contexto: verbal e visual em diálogo de reforço às referências externas ao plano da obra, contidas em uma percepção cotidiana do universo infantil;

[2] pela articulação entre signos e significados, o que diz respeito à ambivalência da literatura infantil [...] como objeto de leitura para a criança e para o adulto, atendendo a um duplo-interesse de decodificação: a literal e a simbólica, o figurativo e o ideológico que, muitas vezes, tem obrigado o pequeno leitor a abandonar a concreção ficcional para abrigar-se inconsolavelmente na abstração — aspecto ambicionado pela “mediocridade quantitativa” da produção literária para crianças que arremata Daniel Link (2002) como falácia, falseamento e fracasso da literatura infantil;

[3] pelas possibilidades de correlacionar significados que se descolam e deslocam-se a cada lance interpretativo do feixe palavra&imagem, através de similaridades e fusões rítmicas verbo-visuais que saltam, como afirmaram Palo & D. Oliveira (1983: 66), “para fora do símbolo e do código alfabético” rumo ao domínio das informações estéticas iconicamente estruturadas.

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