Há um canto de sereia entre as montanhas: em águas de sonho, querer o amado que vai distante... Era assim o mar dentro dos pensamentos de uma menina que não conhecia o mar. Ela adorava colecionar cartões postais de seu litorâneo amor, guardar as paisagens em caixas e gavetas. Mais que tudo, cheiro gosto barulho beleza cor do mar, a menina queria conhecer os cocos nos coqueiros.
Como podia uma árvore plantada na areia?
E tão comprida e tão fina, segurando frutos grandes e esféricos? Por que o coco variava de cores, ora esverdeadas, ora amareladas, oras escuras?
Um dia, oh: a surpresa: um passeio a uma lagoa de água doce. Não era exatamente o mar, mas havia lá praia com areia e coco. O coco, um grande e bem verde, é a lembrança que decide trazer para casa — viajou com ele, o caminho inteiro, no colo. Depois, o coco foi tudo para ela: mesa de apoio, almofada, globo terrestre, pião, bola de futebol... no entanto, um coco assim não é para sempre e, um dia...
COM A MARÉ E O SONHO, de Ninfa Parreiras com ilustrações de André Neves (RHJ, 2006), é um conto de suavidades, com mineirações tão próprias dos escritores que nasceram entre montanhas. Bartolomeu Campos Queirós, como nenhum outro, já havia confessado as amarrações de ser menino e conter uma ideia sobre a imensidão: « Eu crescia marinheiro em terra seca onde antes estava o mar, carregando o amor entre pálpebras — conchas guardando sonhos. » (AH! MAR..., 1985). Agora ele vem e escreve um bem na quarta capa, em um diálogo de navegar: « Ninfa Parreiras nos convida a buscar, pelo silêncio, o sal que mora em nós temperando nossas cheias e vazantes. Mas, para tanto, há que ter coragem para explorar os mistérios. »
Às bordas do texto e do sonho, André Neves cria uma atmosfera visual coerente às sugestões da narrativa — muito mais que "desenhar" ao pé da letra. Assim, a relação palavra&imagem não é feita de simples complementariedade, reconhecimento por identificação ou reforço de sentido: reinam no livro homologias de figuras linguísticas e plásticas. Do coco-barco nas ondas em cor de rosa, detalhes bem bolados, bem colados que não foram previstos no plano verbal, mostram-se ludicamente para o leitor: um guarda-chuva com peixinhos listrados pendurados a barbante, estrelas-do-mar espalhadas pelo chão — e, numa visão surrealista — gavetas cheias de guardados que se abrem a partir da parede e, dentro delas, coqueiros belamente plantados.
* Extraído de Dobras da Leitura 37: setembro de 2006.
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