25 de março de 2013

cacos de tempos passados

por Peter O.Sagae


Somente a voz da bisavó conseguia decifrar, com sentimento sem igual, um romance pintado em miniatura no fundo de um prato de porcelana. Nos olhos dóceis e ouvidos atentos da menina Cora Coralina, a história da Princesinha Lui e do jovem plebeu reinventava-se em meandros e segredos, através dos delicados desenhos em meio-relevo em azul-forte, azul-pombinho, contra o fundo claro, contra o tempo da memória que se transforma e da imaginação que faz crescer os detalhes complicados. Todavia, um dia, por artes do salta-caminhos, o último prato do aparelho de jantar com noventa e duas peças apareceu quebrado...
Foi ou não a menina “inzoneira, buliçosa e malina”? Responder isto estava fora de cogitação... Foi mesmo castigo sem defesa, como em tempos antigos se fazia – e um caco de louça, pendurado a um cordão, foi levado ao pescoço da pequena Cora.



Brincando a seu modo com palavra e imagem, o delicado texto-vida foi publicado primeiramente no livro Poemas dos becos de Goiás e estórias mais, em 1965, sob o título “Estória do aparelho azul-pombinho”. Dialogando com leitores de qualquer idade, Cora Coralina ganhou duas bonitas versões ilustradas de
O prato azul-pombinho por Angela Lago (Global, 2001) e Lúcia Hiratsuka (2011), além de apresentar-se intertextualmente em outros trabalhos da literatura para crianças. *


Sônia Barros escreveu O segredo da xícara cor de nuvem, com ilustrações de Ana Terra (Moderna, 2009) — uma xícara única e delicada, cinza, azul e suave carmim, numa cor de nuvens que o tempo deu à velha porcelana, atravessa gerações: do aparelho de chá completo e branco que pertenceu a Ana, trisavó da narradora, para os guardados na cristaleira da avó Aninha e, finalmente, às mãos ansiosas e pouco seguras de Marina. A peça se desfaz em pedacinhos e lágrimas. Contudo, o incidente faz emergir as histórias a respeito das outras cinco xícaras e como se perderam ao longo do tempo. Este é o segredo de família que se compartilha, reavivando instantes e presenças do passado em cada gesto do presente. A narrativa feminina e fragmentária de Sônia Barros mantém um íntimo diálogo com a memória do prato azul-pombinho dos versos de Cora Coralina, de tal maneira que temos aí uma paráfrase bastante marcada, uma homenagem. Há, entretanto, um desvio em relação a história exemplar da doceira-poeta da Cidade de Goiás: em vez da severidade representada pelo colar de cacos no pescoço da menina, Sônia Barros inventa afetos e um outro segredo: um frasco de cola para porcelana que, anos e anos, tem sido utilizado para manter aparentemente intacta a última xícara do antigo jogo, a princesa de pele mesclada de toda a cristaleira.**


Por sua vez, Vivina de Assis Viana recolhe do fundo do córrego as tristes lembranças de uma menina, a pequena narradora, junto a seu irmão colecionando cacos de louça que brilham, na água, como vidro vivo, grandes, pequenos, arredondados, compridos, de todo jeito, coloridos ou brancos, com listras e outras estampas miúdas. Mas havia um pequeno e branco com listas cor de rosa (sic), objeto de disputa: afinal, quem o encontrou? O menino diz ter sido ele — “Mas é mentira, fui eu, e guardei lá na casinha do tanque, junto com os outros. Mas meu irmão é maior do que eu, foi lá e tirou. E guardou junto com as coisas só dele. E pôs o nome: o rei dos cacos.” Nada grave a rivalidade fraternal, principalmente quando lá estão as árvores para subir, as galinhas para correr atrás, as frutas verdes para comer e um outro dia para continuar buscando cacos no leito do rio... Se um fosse igual a outro, talvez viesse a encaixar-se no pedaço já guardado — como os textos a serem descobertos, sempre mergulhados em outros textos, tal este O rei dos cacos, originalmente ilustrado por Rubens Matuck (1977), depois Carlos Moreno (1983) e agora a terceira edição nas cores profundas de Taisa Borges (Brasiliense, 2009). ***


* O livro de Cora Coralina foi apresentado em Dobras da Leitura, Ano III N.º 9 (2002).
Comentários revistos e ampliados em março de 2013 para Dobras da Leitura O’Blog.

** Resenha escrita originalmente para a Bibliografia Brasileira de Literatura Infantil e Juvenil 2009, 

da BIJ Monteiro Lobato – Secretaria de Cultura/PMSP.

*** Obrigado, May Shuravel, por lembrar e levar-me às edições anteriores!

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