Peter O'Sagae
Diferentes histórias para crianças lançam suas raízes sobre os gêneros da literatura oral, na forma de apropriação ou estilização dos velhos esquemas textuais. Sentemos à sombra das palavras e das alegorias, por favor...
KAMAZU é o reconto de uma lenda angolana, com texto e ilustrações de Carla Caruso (Mundo Mirim, 2012). Órfão e escravo entre os negros de sua terra, após ter sido empenhado como pagamento por um tio, Kamazu sonha e muito trabalha para libertar-se. Ao final do dia, descansa protegido por um baobá, árvore robusta de imensa força simbólica: longevidade, paciência, permanência... Então, veio, uma noite, uma voz que o levaria à visão de um rio. Porém, Kamazu não deu a devida importância à mensagem da natureza que sempre penetra o sonho dos homens. A voz voltou para acordá-lo e, então, o fez caminhar para o curso de seu próprio destino: conhecer os segredos das plantas para curar a dor dos animais e dos homens, libertando o próximo para libertar a si.
Nesta apropriação de uma narrativa tradicional, Carla Caruso deu um nome ao herói e acrescentou outros elementos da cultura mágica africana, como as sombras que se movem alimentando os bosques de mistério e uma verde pedra calubungo, espécie de pedra filosofal que potencializa as propriedades medicinais das ervas combinadas.
SABELÁONDE é um livro ilustrado de Cristiana Valentini e Philip Giordano, com tradução de Maria Amália Camargo (Caramelo, 2012). Trata-se de um apólogo a respeito do amadurecimento interior: enquanto muitas sementes esperam a passagem do vento para caírem no mundo, e virarem árvores, e começarem a falar, sabeláonde, sabeláquando, uma semente pequenina preferiu agarrar-se à copa de uma cerejeira no alto de uma montanha deserta, ou melhor, quase deserta. Lá permaneciam a árvore e sua semente, recebendo abrigo e agasalho contra a chuva, o sol ardido, as ventanias frias, por mais um dia, um dia, um dia... A sementinha no entanto não aprendia a falar. Confiante e contente, apenas sorria a todas as perguntas que a árvore perguntava, até que um pássaro roubou a companhia entre ambas em uma manhã de outono. Seria o fim, ou o começo de uma nova estação, em outra montanha, não muito distante, sabeláonde, do outro lado da campina?
No diálogo com o passado fabular, o apólogo moderno ainda se concentra em temas do cotidiano, humanizando uma aprendizagem. Contudo, a figura do ouvinte tradicional, preocupado em defender-se dos interesses e das imposturas sociais, passa a reviver uma relação mais íntima, familiar e existencial.
PÉ DE SAPATO, com texto e ilustrações de Hermes Bernadi Jr. (Biruta, 2011), traz uma alegoria ou uma história de muitas histórias. Enquanto uma árvore morria, bem no centro de um vilarejo, os habitantes recusavam-se a sair do conforto de suas casas. Eles viviam descalços, verdadeiramente presos, com medo de machucar os pés. Por isso, bem pouco conversavam na hora que um e outro abria ou fechava a janela. Um sapateiro chegou ao lugar, sem que ninguém lhe desse atenção, tão bem pareciam viver as pessoas descalças dentro de casa... Mas o sapateiro fez tamancos bordados, chinelas de seda e fitas, sapatos de couro, botas pintadas, sapatilhas e sandálias de várias feitios que se acumulavam sob a árvore, depois em seus galhos ao modo de flores coloridas – e, como os pássaros da ilustração, Hermes conta que os olhos viriam espiar e pousar sobre os sapatos através da fresta das janelas.
O clima pertence à natureza dos contos mágicos, com vocação para a lenda: uma menina se achega da árvore e escolhe calçar o primeiro par de sapatos! Ela é uma espécie de Cinderela abrindo caminho para as pessoas daquele lugar, inventando histórias e voando por outras estradas porque os pés jamais viverão nus, dentro de casa, outra vez.
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