23 de setembro de 2014

das árvores textuais

Peter O'Sagae


Diferentes histórias para crianças lançam suas raízes sobre os gêneros da literatura oral, na forma de apropriação ou estilização dos velhos esquemas textuais. Sentemos à sombra das palavras e das alegorias, por favor...


KAMAZU é o reconto de uma lenda angolana, com texto e ilustrações de Carla Caruso (Mundo Mirim, 2012). Órfão e escravo entre os negros de sua terra, após ter sido empenhado como pagamento por um tio, Kamazu sonha e muito trabalha para libertar-se. Ao final do dia, descansa protegido por um baobá, árvore robusta de imensa força simbólica: longevidade, paciência, permanência... Então, veio, uma noite, uma voz que o levaria à visão de um rio. Porém, Kamazu não deu a devida importância à mensagem da natureza que sempre penetra o sonho dos homens. A voz voltou para acordá-lo e, então, o fez caminhar para o curso de seu próprio destino: conhecer os segredos das plantas para curar a dor dos animais e dos homens, libertando o próximo para libertar a si.


Nesta apropriação de uma narrativa tradicional, Carla Caruso deu um nome ao herói e acrescentou outros elementos da cultura mágica africana, como as sombras que se movem alimentando os bosques de mistério e uma verde pedra calubungo, espécie de pedra filosofal que potencializa as propriedades medicinais das ervas combinadas.


SABELÁONDE é um livro ilustrado de Cristiana Valentini e Philip Giordano, com tradução de Maria Amália Camargo (Caramelo, 2012). Trata-se de um apólogo a respeito do amadurecimento interior: enquanto muitas sementes esperam a passagem do vento para caírem no mundo, e virarem árvores, e começarem a falar, sabeláonde, sabeláquando, uma semente pequenina preferiu agarrar-se à copa de uma cerejeira no alto de uma montanha deserta, ou melhor, quase deserta. Lá permaneciam a árvore e sua semente, recebendo abrigo e agasalho contra a chuva, o sol ardido, as ventanias frias, por mais um dia, um dia, um dia... A sementinha no entanto não aprendia a falar. Confiante e contente, apenas sorria a todas as perguntas que a árvore perguntava, até que um pássaro roubou a companhia entre ambas em uma manhã de outono. Seria o fim, ou o começo de uma nova estação, em outra montanha, não muito distante, sabeláonde, do outro lado da campina?


No diálogo com o passado fabular, o apólogo moderno ainda se concentra em temas do cotidiano, humanizando uma aprendizagem. Contudo, a figura do ouvinte tradicional, preocupado em defender-se dos interesses e das imposturas sociais, passa a reviver uma relação mais íntima, familiar e existencial.


PÉ DE SAPATO, com texto e ilustrações de Hermes Bernadi Jr. (Biruta, 2011), traz uma alegoria ou uma história de muitas histórias. Enquanto uma árvore morria, bem no centro de um vilarejo, os habitantes recusavam-se a sair do conforto de suas casas. Eles viviam descalços, verdadeiramente presos, com medo de machucar os pés. Por isso, bem pouco conversavam na hora que um e outro abria ou fechava a janela. Um sapateiro chegou ao lugar, sem que ninguém lhe desse atenção, tão bem pareciam viver as pessoas descalças dentro de casa... Mas o sapateiro fez tamancos bordados, chinelas de seda e fitas, sapatos de couro, botas pintadas, sapatilhas e sandálias de várias feitios que se acumulavam sob a árvore, depois em seus galhos ao modo de flores coloridas – e, como os pássaros da ilustração, Hermes conta que os olhos viriam espiar e pousar sobre os sapatos através da fresta das janelas.


O clima pertence à natureza dos contos mágicos, com vocação para a lenda: uma menina se achega da árvore e escolhe calçar o primeiro par de sapatos! Ela é uma espécie de Cinderela abrindo caminho para as pessoas daquele lugar, inventando histórias e voando por outras estradas porque os pés jamais viverão nus, dentro de casa, outra vez.

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