Há tanto tempo tento ler um livro para crianças de Cyro de Mattos, mas confesso: desisto a meio caminho, volto atrás, volto ao livro, persisto, insisto, volto às primeiras páginas, enrolo-me depois em outros afazeres. Um livro contava a história de um boi, outro tinha a capa verde e a palavra roda no título. Ora, bois, ora roda, têm tudo a ver comigo, e gosto também do estilo, um trabalho consistente com a linguagem, aí nenhum problema. Ou o problema, porque a voz do texto como a música guarda uma tonalidade, um ritmo. Ambos os textos não me convenciam como literatura infantil. Eram canções de velho. Para leitores velhos, como também sou.
Abro hoje O QUE EU VI POR AÍ, sim de Cyro de Mattos, com ilustrações da polonesa Marta Ignerska e o projeto gráfico de Monique Sena (Biruta, 2014), e sinto-me um pouco mais em paz. A voz do texto é igualmente mansa e soa como um convite às horas de contemplação, assim que o sol acorda, com seu olho enorme, onde o céu faz uma curva e vai empurrando as sombras, inventando leões rugindo nas ondas com suas jubas brancas... Sim, respinga, no rendilhado dessa prosa poética, um olhar de criança que, como o sol, pode se admirar no espelho que ele mesmo espalha na imensidão do mar.
Sim, a descrição do amanhecer não é um objeto novo na estante de meus livros. Nem a apreciação das nuvens que rolam acima, transformando-se. Mas existe, no entanto, uma necessidade de aprender a observar a natureza de uma maneira descompromissada, sem o agito do cotidiano. E talvez a lição comece durante a infância, ou no amanhecer de um dia.
Cyro de Mattos passeia do horizonte à mata, à chuva da tarde, às figuras da noite. Formas e formigas enfileiram-se em seu texto que soa, enfim, como uma oração que exalta a vida, incansável, de flores e insetos, cores e aves, água e pedras em uma correnteza de imagens. Olhar as belezas do mundo faz lembrar outros textos, como O MENINO MAIS BONITO DO MUNDO, de Ziraldo (1983). Porém aqui a narrativa mítica cede lugar às cenas engraçadas, quando o olhar contemplativo de menino assume a proposição de imagens imaginadas e lembranças: um jogador anão no meio do campo fazendo um gol no goleiro grandão, uma velhinha (que não assobia) mas chupa cana com um dente só, palhaços, presepadas, uma macaca (que não é caixeira de uma venda) mas faz toda a família dormir...
Desde a capa do livro, já se anunciava a posição de expectador de um grande cinema. O que há de diferente é a sugestão da criança narrar e também editar seu próprio filme, após a aprendizagem das coisas simples, leves e engraçadas. Tudo isso explica as ilustrações de Ignerska, as figuras de muitos braços e olhos que povoam as páginas do livro, sempre em movimento. Apenas o projeto gráfico poderia ser mais suave, claro e aberto à intervenção dos leitores. Os mais novos, não eu. Sempre em movimento.
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P.S. Também Manuel Filho possui um livro com título bastante parecido:
O que vi por aí: andanças e descobertas de um escritor pelo Brasil, il. Marcello Araujo (Arvoredo, 2013) para jovens leitores, que eu vi por aí, dia 1º de julho. Foto: Patrícia Machado/Facebook.
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