25 de abril de 2013

parataxe, sinhá!

peter, peter por aí...


Com a sofisticação e a simplicidade de um jogo, o livro-poema EU VI UM PAVÃO aqui se apresenta pela escolha do editor Adilson Miguel (Scipione, 2011), como um artefato de muitas mãos. Veja só: um poema folclórico inglês, um ilustrador e serígrafo indiano chamado Ram Singh Urveti, o projeto gráfico assinado por um brasileiro com sobrenome japonês, Jonathan Yamakami, uma casa editorial indiana aplaudida pelos quatro ventos como a Tara Books, mares, mares, letras, feiras, imagens e aviões, a chegada na tradução de Angélica Freitas. Oi, pá: um livro que celebra a tradição bem ao gosto do desenvolvimento estético-econômico contemporâneo – parataxe, sinhá!

Os versos andam soltos pela rede mundial. Portanto, ninguém vai se importar, verdadeiramente, se alguém aqui os copiou:

eu vi um pavão com uma cauda de fogo
eu vi um cometa derramar granizo
eu vi uma nuvem enrolada em hera
eu vi uma árvore andar pela terra
eu vi uma formiga engolir uma baleia
eu vi um mar bravo cheio de cerveja
eu vi um copo de três metros de fundura
eu vi um poço com lágrimas de lamúria
eu vi olhos numa chama flamejante
eu vi uma casa maior que a lua e mais distante
eu vi o sol até no meio da escuridão
eu vi quem teve essa incrível visão


Ô, minha gente, eu vi as resenhas repetindo a quarta de capa, repetindo e, se repetindo, ditando um ritmo só de leitura: “Eu vi um pavão é um poema clássico, surgido na Inglaterra do século XVII, de autor desconhecido. À primeira vista, parece um poema fantástico. Mas se os versos forem lidos com pausas e recombinados entre si, o sentido se mostra claramente. O livro brinca com as possíveis inversões dentro do poema e usa o design e a arte a serviço da linguagem, encantando crianças e desafiando adultos. O resultado é um belo jogo de espelhos, que ora revela, ora esconde, e sugere novos significados a cada leitura.”


Pois, vamos lá, pisando bem devagar: o truque do texto é fugir à lógica subordinativa – parataxe, sinhá! E ir justapondo versos como uma simples enumeração de quadros ou figuras, ao longo de uma exposição, na tapeçaria do poema por onde o leitor vai. É um redemoinho de imagens... Mas, basta tomar um verso pela metade para ter uma leitura mais chão, mais terra-terra e razoável, decifrando cada imagem em seu próprio lugar: com uma cauda de fogo, eu vi um cometa... engolir uma baleia, eu vi o mar bravo... e, por aí vai a perlenga, parlenda, sem tantos mistérios. É parataxe, sinhá!

Há um encanto no vislumbre que se constrói pela evocação de formas repetidas e análogas. É a cauda do pavão flamejante, iridescente, cheia de olhos para olhar. É a cauda do cometa, de fogo, gelo e granizo. É a forma das gotas, das lágrimas e dos olhos. É o corpo oblíquo da formiga e da baleia. É a composição explosiva do sol – e tudo isso quase que dispensando ilustração, vai lá e pega na riqueza do verbal.


Todas as coisas em profusão: a escolha apropriada das gravuras de Ram Singh ou Ramsingh Urveti, transbordando movimento nas formas orgânicas da arte gondi, grupo étnico da região mais central da Índia, ligados tradicionalmente à agricultura. Não é estranho, assim, assim, a exuberância de traços com que Urveti define e dá texturas às árvores, depois às aves e aos insetos, mesmo a liquidez das águas e o volátil das chamas que parecem tremer como folhas... todas as coisas em procissão.

O projeto gráfico do livro EU VI UM PAVÃO arremata palavra e imagem. Espelho? Não acho. Digo que é: continuidade, através de recortes e janelas abertas nas páginas e também na mente de quem se atreve a entrar por ali.


Ô, sinhá, resenhar um livro assim não é fácil, não, parece até que deixa a obra complicada demais. Por isso, decidi terminar, determinar, pegar lá em Alagoas, uma peça de Mestra Virgínia, palavra apeando da sintaxe, se juntando sem muita conjunção, pela forma do som, contando histórias, vivências por imagens. Parataxe, entrai na roda, entrai na roda, sem parar...



23 de abril de 2013

letra, tipo, palavra... bicho!

por pet:r o’sagae


“mesmo que ninguém
entenda nada 
tudo é invenção”
 

Pois bem: livros como NUM ZOOLÓGICO DE LETRAS, de Régis Bonvicino, com a programação visual de Guto Lacaz (Maltese, 1994), sempre me fazem lembrar histórias de sala de aula. Tive, por acaso, um aluno que me perguntava se eram importantes e qual a necessidade de aprender os três modos retóricos com que a palavra é carregada de significados, segundo as lições do ABC de Ezra Pound (1934) – melopéia, fanopéia e logopéia – nomes que, escritos à antiga regra, com acentos, figuram bem mais interessantes como esses pequenos insetos que estão nos jardins, com antenas zumbidoras e asas tortas transparentes. Porque a questão é essa: ouvir, ver e pensar com sensibilidade a poesia para crianças, sem perder o senso de humor. Possibilidades de descobertas dentro de uma só palavra, sem exigir versos longos ou explicadinhos, para descobrir mel no interior da palavra melancia. Pega o leitor e o embala com o som, uma visão (pessoal) e várias idéias. Que brilhem e pisquem.


Pois, então: Régis Bonvicino se avizinha da poesia visual no poema que dá título ao livro, único para o público infantil em sua produção. “Num zoológico de letras”, a imagem gráfica é quase sempre metonímia, ilustrando uma característica que permite o leitor vislumbrar o animal inteiro, em movimento, canto, urro, alarido, camuflagem, garras ou dentes. Em uma lista com 34 nomes, temos, lemos, vemos:

aa aa aa aa aa belhas 
eLEFANTe 
m:rc:g: 
j%g%%t%r%c%


Tão simples como uma brincadeira de criança, BICHOS TIPOGRÁFICOS, do poeta, tipografo e editor Guilherme Mansur (Edições Dubolsinho, 2007), explora as diferentes características dos animais através do desenho de uma ou mais letras que compõem seus nomes. Assim, uma gaivota voa nas asas da letra v, um canguru pode carregar gentilmente o filhote na barriga da letra g. Por vezes, o nome do bicho vai tomando conta da página, espacializando-se discretamente, como um rinoceronte, ou toda-toda para chamar a atenção, como a letra f escolheu equilibrar a bola do O na ponta do próprio nariz, imitando uma foca, ou muitos zzzz ziguezagueando uma zebra veloz...


Por sua vez, ANIMAIS, de Arnaldo Antunes e Zaba Moreau, com ilustrações do Grupo Xiloceasa (Editora 34, 2011), brinca com deslocamentos, permutas e acréscimos de letras que facilmente poderiam ser tomados como erros. Ao contrário, o que se descortina é um jogo de encaixar nomes e coisas aos bichos que se transformam totalmente pelo exercício da imaginação. Tipo assim: vacaVAlo, MARIpousa, mosquiSIto, DormeDário... Parece difícil acreditar que esses novos bichos sejam, por si só, um poema. Mas são. Montados artificialmente através de um procedimento que os linguistas denominam amalgama e os poetas chamam de palavra-valise, a mistura de duas ou mais palavras, à base de trocadilhos sonoros ou visuais que levam ao riso – porque, em geral, acabam permitindo-nos ver/rever criativamente uma existência biológica e gramatical, cá entre nós, muitas vezes sem graça...


21 de abril de 2013

ilustrando com letra

Vale um intervalo na leitura?

Olhar a girafa periscópica de Angela-Lago, saindo,
elegante, do livro Ave Palavra, de Guimar˜es Rosa...


Ouvir a cigarra breve no v’deo, como na exist^ncia...


Fazer as necess’rias perguntas, bem r’pidas...


Descobrir quem no azul voa...


É bonito sertão-bicho!


18 de abril de 2013

poesia no formigueiro

p.e.t.e.r...o... s.a.g.a.e


Era um livro que escorregou da mão de uma menina e caiu na grama, livre, despertando a atenção de uma formiguinha. Era a primeira expedição em que a jovem operária tomava parte. Desconhecia o que era a natureza em um dia de verão, o azul tão imenso e os verdes tantos por todos os lados. Ela não conseguia, não podia mesmo continuar caminhando de cabeça baixa naquela interminável fila de formigas, tão irmãs, tão iguaizinhas no corpo, nas seis patas tateando obstáculos, pedras e troncos, nas antenas voltadas apenas para a repetição do dia-a-dia...


Era, então, um livro, um mundo novo para a formiguinha de primeira viagem. Ela logo descobriu a palavra “folha” verde e cheirosa, colocando-a delicadamente nas costas, a fim de voltar para a fila. Mas, qual? Somente formigas ordeiras e atentas saberiam retornar ao mesmo lugar – o que não era o caso daquela jovem... O fato não passaria desapercebido e a notícia correu elétrica às antenas da formiga-líder no começo da fila. Era uma vez, promessa de enorme confusão!


FORMIGAS, primeiro livro de Elaine Pasquali Cavion, com ilustrações de André Neves (Paulus, 2009), é uma pequena obra na aparência, porém grandiosa nas soluções para a narrativa. Ainda que venha contar da vida monótona das formigas, preocupadinhas com a provisão de migalhas e folhas, a escritora conduz todas à descoberta das palavras, umas pesadas, outras leves, que adoçam os sonhos mais que grãos de açúcar, ampliando os horizontes no interior do formigueiro. E, quando certa cigarra chega para oferecer seus serviços, como costumava fazer em todos os invernos, encontra a caridade e a claridade de uma porta aberta: a literatura em meio às coisas comuns do cotidiano!


"formigas também são palavras
com seu alfabeto miúdo"

17 de abril de 2013

no entanto, mais antenadas

peter o.o sagae*


Desde outros tempos, uma formiga que era só formiga e uma cigarra que era só cigarra se encontraram — e a gente bem sabe no que isso deu. Contudo, mais sábias e antenadas, as novas gerações de formigas e cigarras pertencem a duas interessantes espécies de experiências poéticas: são formigarras e cigamigas que, por aí, andam, tanto, tanto, na terra e no ar, contando histórias de outros tempos...


Ora, se é verdade que a cigarra continua cigana, é também cigamiga, sem abrir mão da capacidade de sonhar e viver seresteira. Por sua vez, a formiga continua com garra e muito arrumadeira, mas não corre mais risco de morrer de enfarto formigante: virou, por que não, a dona da festa, virou fogueteira! É assim que Gloria Kirinus relê a antiga fábula no livro-poema FORMIGARRA E CIGAMIGA, com ilustrações e projeto gráfico de Guilherme Zamoner (Braga, 1993). A autora propõe um saber com sabor e relembra, na interna de capa, a presença garantida da história nos velhos livros escolares como um terreno privilegiado para louvar os esforços da formiga – tão útil, ordeira, trabalhadora, contribuindo para o progresso, como toda criança deveria ser... Se não tivesse sido invadida pelo canto da cigarra, confessa Gloria, ela mesma não teria o destino da poesia.


O livro, INFELIZMENTE fora de catálogo, possui duas portas de entradas: um lado mais Cigamiga, outro lado mais Formigarra. Essa brincadeira se deve ao projeto gráfico de Zamoner que trabalha com o suporte material e também com a espacialidade da escrita sobre o branco da página, pondo em destaque os paralelismos sintáticos, as anáforas e as repetições de rimas e aliterações que os versos carreiam... Formigarra e Cigamiga viram de um lado para o outro, com óculos estranhos, roupas balofas e sapatos extravagantes... Mas, veja você: rumo a um derradeiro encontro, bem no centro do livro, uma cigarra e várias formigas desenhadas realisticamente evocam a natureza primitiva: que histórias hoje elas poderiam contar?


* Texto extraído de Dobras da Leitura 39, novembro de 2006.

16 de abril de 2013

era cigarra, era formiga

peter o.o sagae


Nunca pude saber se as formigas têm dentes para sorrir pois, mesmo banguelas, o fato não as impediria de cair na risada contra a cigarra, tal como fabulou Esopo a respeito da colheita dos preguiçosos, num belo e distante dia de inverno...


Roberto Piumini transformou a velha fábula, curtinha, em uma lengalenga: pousada no alto de um galho, a cigarra azucrina um ratinho, uma abelha e, por fim, uma formiga fatigada que puxa um pesado grão de trigo. Ora, o frescor verde das folhas de verão desaparece, tudo seca e a cigarra vai ao chão. Zanzando por todos os lados, ela não mais estridula, mas treme com fome e com frio... Ao fim do percurso narrativo, encontram-se A CIGARRA E A FORMIGA, com imagens de Nicoletta Costa e a tradução de Daniela Bunn (Positivo, 2010), no formigueiro.

A primeira suplica, a outra explica: “Para trazer aqui dois ou três grãos, duas ou três de nós trabalharam dois ou três dias.” Educadíssima a formiga. Porém, o coro de vozes não muda um til ou uma vírgula da lição, enquanto a cigarra se aproxima da porta: cantou, agora dance!


No entanto, dizem... que, ao escolher a história da cigarra e da formiga para encabeçar e abrir o volume de suas Fábulas Escolhidas, em 1668, La Fontaine não escondia a intenção de encenar o drama dos artistas – que cantam, pintam, escrevem – e enviar um recado político e polido ao rei e à sociedade frívola da época. A estratégia do escritor francês foi deixar os versos sem o arremate de uma moralidade explícita, permitindo que o final permanecesse em aberto para os leitores tomarem um ou outro partido. Na estante de livros, o busto de La Fontaine parece sorrir e piscar para nós, embora a verdade seja como sofrer mordedura de formiga: ainda nos coça...

Muitos escritores e poetas posicionaram-se em defesa da cigarra – o que é bastante óbvio, modificando principalmente o desfecho da narrativa com ampliações, remendos, arremedos, com a moral esópica às avessas, como as duas versões de Monteiro Lobato (1922), a narrativa rimada de Braguinha (nos anos de 1960) ou o poema de José Paulo Paes, breve sempre e bastante sensível, no livro POEMAS PARA BRINCAR, com ilustrações de Luiz Maia (Ática, 1989).

SEM BARRA

Enquanto a formiga
Carrega a comida
Para o formigueiro, 
A cigarra canta,
Canta o dia inteiro. 

A formiga é só trabalho. 
A cigarra é só cantiga. 

Mas sem a cantiga
Da cigarra 
Que distrai da fadiga,
Seria uma barra
O trabalho da formiga!



Por fim, Alessandra Pontes Roscoe também escreve, leva e traz A OUTRA HISTÓRIA DA CIGARRA E DA FORMIGA, com ilustrações de Adilson Farias (Mundo Mirim, 2010), introduzindo um bem-te-vi para resolver o bate-boca ao pé do formigueiro. O texto possui uma divisão formal como se escrito em versos, deixando prevalecer, contudo, a feição da prosa em ordem direta:

A formiga, arrependida, 
percebeu que estava sendo metida, 
até mesmo um pouco exibida, 
achando que só o seu trabalho 
era importante na vida.

11 de abril de 2013

simplesmente: que beleza!

peter o’sagae


Mais que comentar livros, aprecio respirá-los aos poucos. Em silêncio, acredite, olhando para as dobras sutis da palavra e da imagem. Um livro sempre pode ser uma casa, ensinou Walter Crane (1896). Do pensamento e da visão. É preciso completar. Também do riso, como nesta fábula visual mágica e séria, elegante e infantil: O GRANDE LIVRO DOS RETRATOS DE ANIMAIS, de Svjetlan Junaković, pintor, designer e escultor croata, traduzido por Marcos Bagno (Positivo e OQO, 2010). Para leitores de qualquer idade, sem dúvida.


Porque não há nada mais afeito à criança que essa desobediência... principalmente, se não há preceptores por perto! E Junaković convida-nos para um passeio aos velhos mestres da pintura, entre eles, holandeses, flamingos, ops! flamengos, venezianos, franceses, alemães... Abra uma página qualquer. Aprecie, sem mediação. Acompanhe as legendas, a descrição das poses e dos detalhes das roupas, as relações possíveis entre os personagens e seus retratistas, cada comentário sobre a importância desse conjunto de vinte e seis obras para os historiadores. Uma dúvida é por que pintar, outra é a necessidade de saber o que há para jantar.


E pode ser que você descubra algo encantador ou estranho ali se elevando, ironicamente, fazendo curvar suas sobrancelhas. Todos os retratos olham firmes o seu próprio espectador, num jogo de símbolos, ambições, delicadezas entre o gótico escuro e o efeito luminoso. Que os escritores mais famosos ou menos famosos deveriam entender. Os ilustradores também. Afinal, a lição da arte é para todos, sem distinção. Mas, diferentemente ecoa. Um livro belo e leve.


“A semelhança que pode ser encontrada com alguns dos mais famosos retratos da espécie humana é puro acaso.” (Svjetlan Junaković)


As pinturas d’O GRANDE LIVRO DOS RETRATOS DE ANIMAIS espalham-se pela [internet], mas exigem suas legendas e comentários para chegarmos mais perto da irreverência de Svjetlan Junaković, repaginando a história da arte, dos campos, estábulos e galinheiros.

10 de abril de 2013

um salto da oralidade ao papel

Peter O. Sagae*


Em seu livro, o escritor ganês Meshack Asare reconta uma história que ouviu de seu avô, guardando-a, desde a infância, com os ouvidos do coração. Dá, assim, um testemunho muito recente a respeito da viva expressão oral de seu país como um manancial de fantasia e ensinamentos, abrigados ao colo da literatura impressa especialmente dirigida às crianças. Com a tradução de Cláudia Ribeiro Mesquita e ilustrações do próprio autor, dez anos após seu lançamento, em 1997, A CABRA MÁGICA dá um salto rumo a terras brasileiras através da coleção Barco a Vapor (Edições SM). Como acontece a tantas outras histórias semeadas com os grãos da oralidade, esta narrativa, próxima às lembranças e marcas da enunciação familiar, revela uma mescla de formas que os estudos convencionais separaram em gêneros da literatura de tradição. Uma fábula africana parece ter um pouco de todas as demais narrativas, sem qualquer tipo de esmorecimento rítmico ou moral.

Inicialmente, o narrador nos conduz a um tempo mítico, sem cidades ou continentes, um tempo que escoa às lendas, após a criação do mundo e sua divisão em dois reinos separados por um caudaloso rio. Isolados, viviam os homens e os animais nas margens opostas... Também pertence ao gesto verbal das lendas, o final que, mesmo não explicitado pelo texto de Meshack Asare, aponta uma nova organização da vida: cabras e ovelhas convivendo intimamente com os agrupamentos humanos, tão dóceis em sua natureza e domesticáveis à mão que lhes tomará lã e leite. O importante, na obra, é descobrir como e por que estes animais puseram-se à ventura do caminho...

Partindo em busca de um punhado de sal, a Cabra e a Ovelha caminharam brava e longamente quilômetros e quilômetros até o pôr-do-sol. Sem forças, desembocaram na casa da Onça que, muito generosa, ofereceu-lhes um quarto para o pernoite. Ora, o leitor logo reconhece a estrada dos contos populares que aí começa! A Ovelha é frágil e chorosa, mas Cabra tem gênio de malas-artes e desconfia sabiamente das intenções da imensa felina pintada.


Então, com muita esperteza e um inesperado passe de mágica, a Cabra vira-desvira a sorte, conseguindo salvar a amiga e a própria pele. Conto e fábula se equilibram do meio para o desfecho da narrativa, através da figura antropomórfica da Cabra, da Ovelha e da Onça, em uma luta de sobrevivência e convivência entre os mais fortes e os mais fracos. Mas também é uma história de amizade.

Quanto ao livro, apesar do formato aparentemente restrito, a ilustração de Meshack Asare confere estrutura às sequências da narrativa visual, levando o leitor sempre adiante. Cada personagem representado pela imagem assume um posicionamento claro nas páginas, de acordo com a função estabelecida dentro da história. Todo o interior da casa da Onça é pesadamente cinza, destacando a cor de fogo de sua pelagem, como cores metonímicas da fornalha onde a Cabra e a Ovelha se meteram, em contraste com as verdes pastagens vivas, no início e no final da obra.

* Comentários apresentados na Vitrine Literária de Dobras da Leitura 56, primavera 2008, revistos e ampliados.

9 de abril de 2013

quando bate o berimbau

peter o.sagae


Mestre Gato entra pelas páginas do livro como se fosse um palco: sol às costas, ao som do berimbau, derindau, berimbau, derindau, cantando “Eu venho de longe, venho de Aruanda...”, enquanto o eco repetido da corda de arame percutido se estende e alonga o caminho até uma clareira no meio do mato. Com seu pisar manso, o gato está de procurar uma árvore alta, de galhos firmes, mas finos para ter certeza de a onça, Comadre Onça, arriba jamais subir... Enquanto ela não entra na história, os animais todos que ouviram o chamado din din don din entendem-se com a vontade de saber e aprender capoeira para sair de malandragem, na ginga do corpo, defenderem-se e também atacar na hora do aperto! Armando o bote, a Onça, então, comadre manhosa e dissimulada, vem causar aspecto e fuzuê, requisitando para ela umas aulas, prontinha pra vadiar...


Texto longo com uma linguagem cheia de molejo e floreios, gingando frases entre gírias e um vocabulário bantu, colorido, angolano, num maneirismo roseano, MESTRE GATO E COMADRE ONÇA, escrito e ilustrado por Carolina Cunha (Edições SM, 2011), introduz ladainhas e descrição dos movimentos de capoeira em uma das mais conhecidas fábulas da tradição afro-brasileira. O livro, fazendo homenagem a essa expressão múltipla que é luta, dança e esporte, vem acompanhado de um CD com canções gravadas pelas crianças e mestres dos grupos Nzinga, Espaço Cultural Pierre Verger e Pequenos do João, de Salvador.


7 de abril de 2013

macacos me abracem

peter o.sagae... escafedeu-se!


O que as pessoas não sabem é que já fui macaco. Não em outra vida, Deus me livre de acreditar numa coisas dessas... Foi mesmo no rádio, há vinte anos, enfrentando onça no meio do mato – e, no jogo estereofônico, ela de um lado, eu do outro, alertando que, logo, logo, ia dar a pior tempestade. Só mesmo se amarrando nas árvores com cordas e cipós, nó bem forte, pra vento não levar bicho ou gente voando pelos ares. Coisa terrível! Toda a família já estava amarrada, mas, se a comadre quisesse, arrumava corda para amarrá-la também. Ninguém podia imaginar quem era o macaco na caixa do alto-falante como, na fábula, dona onça mal desconfiou da verdadeira identidade do guri disfarçado de Bicho-Folharal.


Trocando macaco por gato, coelho, raposa, esta história universal tão ao gosto brasileiro do Bicho-Folhas, Folha-Seca ou Folharascal do Monte, já foi contada por muita gente africana, europeia, espanholeta, portuguesa, costa-riquenha, mexicana, chiquitita e panchita bacana... Constantemente reencontro o macaco esperto e extravagante nos livros, como O BICHO FOLHARAL, de Angela-Lago (Rocco, 2005), ou


DONA ONÇA É MUITO SONSA, de Maurício Veneza (Prumo, 2009). Nesta pequena coletânea de três fábulas, o ilustrador surpreende pelo contorno... das frases! O texto é extremamente agradável para leitura em voz alta, balançando o macaco bem humorado de fala em fala... Pula depressa o macaco pro galho, desmascarando onça que se fazia defunta: “Ué, vocês não sabem? Minha avó, quando morreu, deu três espirros. Só aí todo mundo teve garantia do falecimento.” Pula também depressa o gato que dá ares da graça na última narrativa do livro. Agora, quem gosta de texto com acentos ligeiros, vogais abertas, consoantes fortes, ritmo de baião com foxtrote e – além de tudo, pensa que é macaco na leitura para pular vírgulas, sem errar, nem tomar fôlego – você, meu amigo, minha amiga, não pode deixar de conhecer A ONÇA E A CABAÇA, de Daniela Chindler com ilustrações de Mariana Massarani (Paulinas, 1998). A confusão assim começa:

O macaco, que, cá entre nós, não é flor que se cheire, se meteu numa encrenca das boas. Foi mangar da onça, apoquentar-lhe o juízo a troco de nada, ou melhor, a troco de uma piada e umas boas gargalhadas. A onça estava lá, deitadinha, tomando a fresca, aproveitando a gostosura que é o final da tarde, quando apareceu o macaco com a cabeça cheia de ideias. Ele foi logo anunciando, para quem quisesse ouvir:

__ Dizem que sou pequeno, mas assanhado como o demo. Perturbo igual mosquito no ouvido de quem quer dormir. Atazano tanto quanto marido ciumento, incomodo mais que tachinha na cadeira. A ruindade é minha vocação. Adoro mexer em casa de marimbondo, jogar água em formigueiro e perturbar onça dorminhoca.

Depois, mirou bem miradinho e tum...




6 de abril de 2013

macaco velho não mete a mão em cumbuca

Dobras da Leitura recebeu...


Maurício Veneza ilustrou também O LEÃO E O MACACO, de Ieda de Oliveira (Larousse, 2011) pintando a juba de vermelho para esconder os fios brancos da cabeça real, em uma paráfrase sobre a narrativa tradicional japonesa Oyasute-Yama, ou “A Montanha dos Velhos”.

5 de abril de 2013

macaco galante vestido de gente...

Peter O. Sagae*


Há no mundo algum animal mais esperto que a Raposa? No Brasil, tem: um pássaro chamado Quenquém, danado, orgulho de toda parentalha de bicos, asas e penas. Pois esse Quenquém conseguiu vingar a honra daquele primo europeu, o Corvo que trazia um naco de queijo no bico, quando uma raposa o avistou, ‘tá lembrado? Pois o pássaro brasileiro, com muita lábia e ciência, embora tão perto do fim preso à boca da Raposa, não se desesperou e conseguiu escapar-lhe... Voando para bem longe!

É impagável a cena em que a velha matreira pensa passar uma decompostura em alguns meninos, como contou Câmara Cascudo, e Mary França transformou em miquinhos encarapitados na árvore, ao selecionar cinco histórias para a coletânea O MACACO FAZ DAS SUAS: um passeio pelo folclore, com ilustrações de Eliardo França (Global, 2007). Contudo, dá no mesmo, quando querem: meninos são dados às macaquices.


A segunda fábula fala do pequeno filhote de Rato que saí de casa pela primeira vez. Embora prudente, ouvindo os conselhos cautelosos da mãe, deixa-se enganar pelas aparências. Quem, afinal, será seu amigo: o Gato fofinho ou o Galo estridente?

O leitor, com certeza, estava esperando o Macaco... Ele mesmo só aparece quando perde uma banana no oco do tronco de uma árvore e dá a pedir ajuda aos outros: tenta o lenhador, o soldado, o rei, mais Rato, Gato e Cachorro – esse Macaco é mesmo atentado – e vai à Raposa e à Onça! Mas, como todos estão ocupados com a própria vida, o Macaco decide chamar Aquela-que-não-se-cansa e mete medo em bicho e gente...


Depois, em outro conto de esperteza, sem dar conta de seu atrevimento, o Macaco convoca a Onça e o Touro para um cabo-de-guerra. Ele gosta-que-se-enrosca de por à prova qualquer bicho, não importa o tamanho – e, pulando de página em página, na última história, o Macaco vira Rei dos Animais. Como isso aconteceu? Ora, pregunte para a Raposa, mais falastrona que eu ;-)

O casal França repete o sucesso de sempre: o texto de Mary anda leve pelas cenas enriquecidas com a reação dos personagens e as ilustrações de Eliardo investem nos olhares que revelam a natureza humana mascarada de animal. As imagens, aqui, se apresentam ora colorindo toda uma página, isolada do texto, ora em molduras e requadros que retomam a linguagem gráfica de antigos livros de fábula.

***
« A Onça, vendo os cocos, quis saber a quem pertenciam. O macaco respondeu: — Os cocos são meus. Naturalmente, se a amiga não os quiser. A Onça falou que não queria saber de cocos. Desejava saber se o Macaco tinha visto o Bicho Homem. — Faz tempo que não o vejo — disse o Macaco —, mas já aprendi muita coisa com ele. »

* Comentários extraídos de Dobras da Leitura 47, agosto de 2007.
** Texto revisto em abril de 2013. Link revisitado em abril de 2016.

3 de abril de 2013

no tempo em que os bichos falavam...

peter o'sagae e o mês de abril por aqui


As histórias de animais da literatura para crianças, sem dúvida alguma, descendem das mais antigas fábulas que foram perpetuadas pela voz de diferentes narradores e pelos registros em pedra, argila, pergaminho que intentavam transportar importantes valores morais por terras e povos do Oriente ao Ocidente. Remontando às civilizações egípcia e indiana, as fábulas migraram de uma cultura a outra através da memória de sábios anônimos, ou da figura lendária de Esopo que teria vivido entre os gregos, por volta do VII a.C. Suas pequenas histórias espirituosas foram transcritas para o latim, principalmente por Fedro, no início da Era Cristã — e muitas outras adaptações surgiram até meados do III d.C., atravessando depois séculos e séculos de sombra e proibições, chegando, sob as luzes do XVII, à pena poética de Jean de La Fontaine. Mas seria interessante lembrar – e encaixar entre esses nomes — um poeta espanhol, pouco comentado entre nós outros, chamado Samaniego que igualmente versificou as fábulas em sua língua, além de um certo Manuel Mendes da Vidigueira...


Ora, a essa corrente ou tradição esópica, é preciso juntar narrativas de tribos aborígenes, indígenas e africanas para compreender que o combate aos vícios e o exercício das virtudes impõem um gesto verbal que não conhece fronteiras, porque é Necessidade maior a busca da justiça entre os homens.


São inúmeros os lançamentos de seletas de fábulas, parábolas e apólogos. Porém, desde que comecei a lecionar literatura infantil, praticamente não consigo abrir mão de alguns livros e devo indicá-los a quem deseja um sincero palpite sobre o que não pode faltar em sua biblioteca de estudos ou para compartilhar com as crianças: Fábulas de La Fontaine, por Ferreira Gullar, com versos elegantes e gravuras de Gustave Doré (Editora Revan, 1997); Fábulas de Esopo, compiladas por Ash Russel e Bernard Higton, com a tradução cuidadosa de Heloisa Jahn e um compêndio de variados ilustradores (Companhia das Letrinhas, 2000) e, claro, o volume das Fábulas por Monteiro Lobato, animadamente comentadas pelos personagens do Sítio do Pica-Pau Amarelo (1922).

E vou lembrando, partidário, Emília batendo o pé: ainda que não servissem para grande coisa, as fábulas têm a vantagem de serem curtinhas... Portanto, transmitidas por textos breves e ágeis que privilegiam a inteligência do leitor! Também vale aqui uma recomendação de Dona Benta, tirada após a moral da história da águia e da coruja — Essa fábula se aplica a muita coisa, minha filha. Aplica-se a tudo que é produto nosso. Os escritores acham ótimas todas as coisas que escrevem, por piores que sejam. Quando o pintor pinta um quadro, para ele o quadro é sempre bonitinho. Tudo quanto nós fazemos é “filho de coruja”.
 



Dobras da Leitura recebeu

Alarcão ilustrou, convencionalmente, o livro Fábulas: histórias de Esopo e La Fontaine para o nosso tempo, compilação em prosa de Paulo Coelho (Benvirá/Saraiva, 2011), primeiro livro que o mago do mercado editorial dirige às crianças e aos jovens. Ao contrário do astrônomo da fábula, o escritor sabe, com douta simplicidade em seu texto, que não adiantaria contemplar as maravilhas do céu, sem capacidade para perceber as armadilhas da terra!

Em outro livro, taludo, em capa dura, os admiráveis olhos e o bom humor dos personagens do ilustrador tcheco Adolf Born acompanham 46 fábulas reunidas sob o título O melhor de La Fontaine, com tradução e adaptação de Nílson José Machado (Escrituras, 2012). As velhas fábulas aqui vão se alongando e, entre dísticos e sextilhas, predomina a modalidade da narrativa em trovas.


INFELIZMENTE, quando não terminam com exclamações, reticências ou dois pontos, certas estrofes foram arrematadas por um inadvertido ponto final, de tanto em tanto, comprometendo a fluência do texto, pois conduziu à separação as unidades sintáticas que deveriam compor o enjambement entre versos de estrofes distintas. É o que acontece em “Tributo enviado pelos animais a Alexandre” ou "O asno vestido com a pele do leão”. Problemas de revisão que pontuou ora demais, ora de menos. Assim, quando era desejável uma vírgula – ou um pequeno travessão, em meio a numerosas fábulas, nenhum traço dá aos leitores indicações de pausa e entonação que melhor promoveriam a compreensão do texto.

Fiquemos próximos de a raposa de Ferreira Gullar
que, esperta, percebeu, por nós, uma coisa curiosa:
— O rastro dos que entram é coisa certa, 
enquanto o dos que saem é duvidosa. 

E concluiu, embora sem ter prova: 
— Quem bem pesar as coisas, lá não vai. 
Sabe-se como se entra nessa cova, 
mas não se sabe bem como sai.