1 de dezembro de 2018

Adivinha quem vem para jantar?


. . . andava tão entretido, desde o último domingo, curtindo as postagens de amigos e colegas da literatura infantil e juvenil que conquistaram o Selo Cátedra 10, e acabou me passando despercebido que meu nome também participava desta premiação!

O livro OS CONVIDADOS DA SENHORA OLGA, originalmente “Adivinha quem vem para jantar?”, escrito e ilustrado por Eva Montanari, foi traduzido no final de 2014 para a Editora Jujuba e lançado apenas neste 2018.


Este é o terceiro livro da autora italiana que pude trabalhar e o resultado me deixa bastante contente, em ajudar a trazer seu universo de referências para o pequeno leitor brasileiro, incluindo Cosme Chuvasco de Rondó, o barão nas árvores, do italianíssimo Ítalo Calvino na companhia de outros personagens fantásticos da literatura universal. E, claro, aquele amor à leitura como um prato bom preparado lentamente sobre o fogão...


Vamos ler um trechinho?

Era velha, a senhora Olga, e vivia só no alto da colina. Era cega, a senhora Olga, mas sabia muitíssimo bem onde guardava a concha e o mexedor, a noz-moscada e o manjericão, o fermento e o açúcar de confeiteiro, porque cozinhar era a sua paixão.

A senhora Olga não desgrudava do fogão o dia inteiro. Em sua casa, não havia relógios, mas ela sabia perfeitamente quando era hora de jantar, pois tinha ótimos ouvidos, os ouvidos mais delicados da cidade.

Encostada atrás da porta, a senhora Olga podia ouvir seus convidados pulando, correndo, tropeçando, subindo, caminhando desde o sopé da montanha, e assim ela sabia exatamente quando era hora para começar a cozinhar o macarrão.

Sempre a senhora Olga tinha um convidado diferente e, cada convidado, um jeito especial de andar.


Quer saber da lista dos vencedores do Selo Cátedra 10?
Clique: bllij.catedra.puc-rio.br/index.php/selos/selo-2018
Uma ótima lista para presentear no Natal!

29 de novembro de 2018

correr todos os riscos


Era uma vez...
— Um rei! — logo dirão meus pequenos leitores.
Não, crianças, vocês erraram.

Era uma vez um pedaço de madeira. Não era uma madeira de luxo, mas um simples pedaço de lenha, daqueles que no inverno colocam-se nas estufas e nas lareiras para acender o fogo e para aquecer os aposentos.

Não sei o que aconteceu, mas o fato é que um belo dia esse pedaço de madeira foi parar na oficina de um velho marceneiro, cujo nome era mestre Antônio, mas que todos chamavam de mestre Cereja, por causa da ponta de seu nariz, sempre brilhante e vermelha como uma cereja madura.


*
De AS AVENTURAS DE PINÓQUIO, versão integral do texto clássico do escritor italiano Carlo Collodi, com tradução e ilustrações de Gabriela Rinaldi (Iluminuras, 2002) p. 11. Escreve Silvia Oberg, nas orelhas do livro:

"Muito diferente dos super-heróis de hoje, Pinóquio não tem poderes especiais — não pode voar, não enfrenta os inimigos com força descomunal, não tem inteligência privilegiada. Pinóquio é apenas um boneco de pau feito por mãos humildes, vivendo entre pessoas pobres, enfrentando a vida e, algumas vezes, se dando bem mal. Mas Pinóquio tem um coisa que o faz especial: teima em seguir seus desejos e para isto vai correr todos os riscos."

"Em um outro livro que escreveu para crianças, chamado Histórias alegres, Collodi conta suas lembranças de infância e convida seus leitores a adivinharem quem era o aluno mais preguiçoso, mais agitado e impertinente da escola. E revela seu segredo: não era ninguém mais a não ser ele mesmo! Assim, compreendemos um pouco a força do boneco Pinóquio por ele criado: Collodi era um Pinóquio de carne e osso..."

"Este boneco de pau desafia as convenções e os valores estabelecidos, porém o grande desafio que enfrentará será o de realizar o seu desejo de crescer, de não ser mais apenas um boneco de madeira, mas transformar-se num menino de verdade, transformar-se em gente. Este desafio parece não ser só o de Pinóquio, mas o de todos nós. Talvez, por isto, sua história continue sendo lida, relida, contada e amada por crianças e adultos, resistindo ao tempo e alimentando nossa busca por humanização..."



Carlo Collodi, pseudônimo de Carlo Lorenzini (29/11/1826 - 26/10/1890).

9 de novembro de 2018

meus miolos aqui esquentam

Extra! Extra! Extra!


“O esvaziamento de algumas palavras é prática característica dos dias correntes.” Esta frase de Gustavo Piqueira abre o terceiro volume da coleção Gráfica Particular, dedicado a homenagear e trocar em miúdos (e graúdos) o trabalho do autor editor brasileiro Sebastião Nunes. Era necessário evocar cinquenta anos dedicados aos livros como uma guerrilha necessária. Persistente. Diária. Com DELIRANTE LUCIDEZ. Ele é desses, ele são desses que consegue(m) avocar (atrair para si, aliciar) os acertos palavra + imagem = poesia que a mente distraída tropeçará como um erro.

Sebastião Nunes jamais fora publicado por grandes editoras às quais enviou um original. Ele é desses que fundam uma casa para si – e não curiosamente – chamada Editora Dubolso. Mas também pensou no leitor infantil com as Edições Dubolsinho. Quem se lembra? Então senta e ouve essa dessas dele:

"Criança não é um idiota pequeno, mas pode ser o projeto de um idiota grande." 

É para esquentar os miolos nesta véspera de feira, Feira Miolo(s). Mas hoje à noite ainda tem conversa. Sebastião Nunes de perto. Por isso essa pressa. Depois você pode levar ele embora consigo. O livro Sebastião Nunes: delirante lucidez é uma coedição da Lote 42 com a Casa Rex.



Ontem também teve Marília em meu caminho. Marilia Kubota e sua poesia: quando a gente se sente fora de lugar, o que dizer? Diremos
“agora ando à toa
entre quem vive ao léu
converso com toda pessoa
que teve um amor e perdeu” 
porque é tempo de abraços. É necessário sair desta máquina de colegas virtuais coléricos para a rua. A vida é necessária. Pra escrever. O livro DIÁRIO DA VERTIGEM foi publicado pela Patuá: contrato entre duas ou mais pessoas, sabe? Isso dá pauta. A Editora Patuá também participa da Feira Miolo(s) 2018.

Vamos nus movendo pra lá.

5 de outubro de 2018

... e a vi(d)a se reconstrói todos os dias

A respeito do livro O REI DO ESPETÁCULO, de Elias José, com ilustrações Mariana Massarani (Paulinas Editora, 2005), escrevi no velho site-revista Dobras da Leitura Ano VI - N.º 30, São Paulo: fevereiro de 2006 :-)


Se o rei da confusão é João, e o rei da brincadeira é José... ê Elias, quem você é? Poeta e contador de histórias que agora inventa um livro-homenagem com um lápis apontadinho — o verdadeiro 'rei do espetáculo' — nosso amigo soberano que, quando “em boas mãos, pode fazer coisas de endoidar, de mudar a cara deste mundo algumas vezes chato.”

Neste livro, vinte poemas como se juntasse os dedos das mãos e dos pés, sobre as alegrias e as inquietações do ato criativo, das primeiras letras ao escritor, o desenhista, o professor e o intelectual... o compositor, o arquiteto, o jornalista, o cientista, a costureira e o agricultor, o matemático e o turista. O índio e o lápis? Você nem mesmo esquece o anjo, a velhinha, a adolescente apaixonada e a criança desenhista! Quem poderá dizer que o poeta tem memória curta?

E como o livro-espetáculo não pode parar, vem então seu convite: “leitores virarão poetas e passarão a criar novos poemas para mostrar o poder do nosso rei.” E seus versos já andam soltos por aí, na métrica livre, rimando muito mais ideias do que sílabas... Ora, ora é assim que faz nascer encantadas gentes e continentes na vida que se reconstrói sobre o papel. O ritmo, a harmonia e os sons / dos sentimentos humanos são aqui plantados.

E, para completar seu espetáculo, Elias, vem Mariana Massarani responder à brincadeira com um livro-circo feito de lápis, borracha e cores!

29 de junho de 2018

Porque somos habitados de ritos e orixás.


Se o Tempo guarda uma cor, será certamente um horizonte de lilases rosados como as aquarelas de Edsoleda Santos para emoldurar a inflexível temperança de NANÃ, a Velha. De seu ventre nasceram os orixás que regem a saúde, a beleza, a alegria e os ciclos da natureza. Nanã é água que enlaça a terra, alma e lama que prescinde do labor do ferro para reger as transformações de nascimento e morte. SALÚBA!


Não se deve prender a força e a beleza da água entre as paredes rudes da montanha ou de uma vida comum. Edsoleda Santos reconta a lenda da filha do Oceano -- IEMANJÁ para nos fazer lembrar que a água que, vem do mar, ao mar retornará. Livre. Onde ondas azuis bordadas de espuma recebem a divindade, envolvendo o seu corpo com pérolas. Mãe Africana de Seios Chorosos, ODÒ ÌYÁ!


Todo mito é circular, bem o sabemos. XANGÔ, filho de Oranian e Torosi, nasceu em Oyó e a esta cidade há de voltar para presidir os doze obás ou ministros do reino. Arrogante e causador de confusão na infância e na juventude, foi um dia recebido na casa de Ogum, o senhor dos metais, porém o som do martelo na bigorna abafou os passos do visitante e de Iansã fugindo para uma nova vida. KAWÓ KABIYÈSI LE


Já nos tempos mágicos dos nigerianos reinos, nasceram os filhos de Xangô, deus do trovão, e Iansã, deusa dos raios e das tempestades, enfim, os IBEJIS que nos acordam para nossa consciência ancestral. A história do festivo nascimento dos gêmeos busca responder às questões mais elementares: quem são nossos pais, quem nos criou, de onde viemos. O casal, ligado aos fenômenos do céu, anuncia a descida da água à terra, fertilizando-a, e durante o relato floresce o mito da mãe a lutar bravamente contra a separação momentânea da morte de um de seus queridos filhos. A história, assim, preserva, através dos símbolos da fé, nosso anseio pela divindade.


Por fim, é necessário lembrar: o mal e o remédio estão contidos em um mesmo símbolo, em um mesmo orixá, no mesmo ato e suas potencialidades, conquanto nossa intenção é nossa sentença... Os passos de Omolu ressoam com força magnífica sobre o destino dos homens. Aonde chega, traz prosperidade porque é o Rei, Filho do Senhor. Ele é OBALUAÊ, o Velho que nos exige o Respeito. Detrás das palhas que escondem seu rosto, há luz. Muita luz. ATOTÔ!

* * * 

P.S. A coleção “Lendas Africanas dos Orixás” é composta de sete títulos, dos quais cinco serão apresentados e autógrafos pela autora Edsoleta Santos na Livraria 97, em São Paulo, neste 30 de junho. Textos (revistos) e fotos anteriormente publicados no Instagram e Dobras da Leitura O’Blog: o abraço dos orixás, 20 de nov. 2012. Fotos adicionais: Editora Solisluna/Divulgação.

9 de junho de 2018

dobras da leitura em curso

Hora de recolher os livros que aqui foram se acumulando em cima da mesa durante oito semanas... Esses títulos marcaram uma trilha de leituras compartilhadas complementares ao trabalho de textualizar histórias, prazeres, temores e outras invenções no curso Escrever para Crianças 2018.


Depois de Lobato, o que há? Foi interessante pontuar a incessante apropriação dos personagens da literatura universal até os mais contemporâneos: da comunicação narrativa de Dona Benta sobre as aventuras de Peter Pan (1930) à fome de brincar com o Lobo Mau, em tantos autores, o leitor cai dentro do livro com Alexandre Rampazo: ESTE É O LOBO (2016). A fim de desconstruir papéis ou os gêneros da literatura de tradição, o leitor passou a ser convocado a tomar decisões sobre como, onde e quando despertar uma história, e isso bem demonstra o capítulo inicial de Glaucia Lewicki: ERA MAIS UMA VEZ OUTRA VEZ (2006). Ou então Laura Rankin: POMPOM E BICUDO (1997). Ler para frente, ler para trás. Ler sob muitos ângulos, como propunha a coleção DOZE OLHOS E UMA HISTÓRIA, com Angela Carneiro, Lia Neiva e Sylvia Orthof, mais Elisabeth Teixeira, Roger Mello e Mariana Massarani nas ilustrações (1994).


Com um pé no conto e outro na fábula, um dedo apontando o universo mágico-simbólico e outro a alegoria/metáfora, vamos chegando às histórias de animais contemporâneas. Aqui é preciso também pensar na variedade de intenções: há sempre um texto atrás de novos textos, repetindo, parafraseando, questionando, parodiando, velhos modos de pensar e sentir a realidade... Como é “O lobo e o cordeiro” retomado por Millôr Fernandes: FÁBULAS FABULOSAS (1963)? E a “História de uma gata”, na tradução de Chico Buarque para OS SALTIMBANCOS (1976)? E olha ali o LIN E O OUTRO LADO DO BAMBUNZAL, de Lúcia Hiratsuka (2004).


O leitor está sempre inscrito no texto, daí a importância de ancorar bem, logo de saída, sua presença na cena da comunicação narrativa. E o escritor é o narrador? Um ou outro pega a criança pela mão para atravessar a história? Fomos aos diálogos com uma possível Clarice Lispector, em O MISTÉRIO DO COELHO PENSANTE (1967), e ao fio que não cessa de torcer a Sorte e a Preguiça, no mirabolante corre-corre de Roger Mello: MENINOS DO MANGUE (2001). E então: conto, fábula, narrativa em encaixe ou tudo ao mesmo tempo agora?


A construção do personagem de ficção passa por muitas dúvidas e descobertas: o que faz, o que deixa de fazer, o que diz, mas – principalmente – tudo o que poderá silenciar para o Outro imaginar e entender... Ora lemos um capítulo do Italo Calvino: O VISCONDE PARTIDO AO MEIO (1952), ora outro de Lygia Bojunga: FAZENDO ANA PAZ (1991) e, então, tendo construído o seu personagem, quem terá coragem para descosê-lo? Vamos espiar o desenho “derretendo” INDO NÃO SEI AONDE BUSCAR NÃO SEI O QUÊ (2000).


Indo e já não sabemos aonde... Um pouco de luz, eu peço a José de Alencar: LUCÍOLA (1861), nessa luta entre o narrador e o seu personagem. Como eles se veem? Outro José, Saramago, finge doçuras em A MAIOR FLOR DO MUNDO (2001) e, então, Angela vira Angelus Lago em A BANGUELINHA (2002). Já sabemos, não sabemos, contudo gostamos quando o narrador vem e espinafra com o leitor! E lhe dou o ultimato: O PERSONAGEM ENCALHADO (1995).


Quanto mais a teoria nos desafia, os textos vão se abrindo descomplicados, bonitos e simples. Um afeto, eis o leitor real se identificando com o personagem-leitor inscrito nas páginas de Don e Audrey Wood: MEUS PORQUINHOS (1992). E podemos escolher o verso ou a prosa nos livros ilustrados de Mary e Eliardo França... Sintagma narrativo – isto tá fácil? BANANA (1998). Ou voar ou mergulhar no paradigma que empilha possibilidades, DIA E NOITE (1980). Costurando escolhas numa infância reinventada com TANTOS CANTOS (2012).


Você pode não acreditar, mas gosto dos textos simples... nos quais é preciso assumir que talvez não seja fácil reduzir a linguagem verbal e visual à uma nobreza muito própria, dentro de um projeto gráfico enxuto, sem páginas e páginas que cansam a mão do pequeno leitor. E Eva Furnari joga com o leitor: FILÓ E MARIETA (1983), AMENDOIM (1983), livros de imagem são texto. De Luiz Gouvêa de Paula e Ciça Fittipaldi: O TUCUNARÉ (1989); uma aula de narrativa visual! De Stephen Michael King: O HOMEM QUE AMAVA CAIXAS (1995), a articulação do livro ilustrado não-brasileiro.


Então, um inesperado encontro com o texto que nos devora, Guimarães Rosa: FITA VERDE NO CABELO (conto publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo, no dia 8 de fevereiro de 1964). Mas, aqui, a velha nova história vem com os desenhos de Roger Mello (1992) emoldurando devaneios e silêncio. O que é um texto? Quais os fatores de textualidade? Leonor Lopes Fávero responde. Para quê o texto literário, para quê a busca de uma descrição singular? Chklovski responde. E a nossa inspiração para todos os incursos: “De que serve um livro sem figuras nem diálogos?” Alice pergunta (1865), Lewis Carroll não responde. Claramente.


E um finalmente para ir em frente... As travessuras de Suzy Lee são lembradas em A TRILOGIA DA MARGEM (2012). Escrever, desenhar é arremeter-se à página. O livro para crianças e jovens pede ou não pede ilustrações? Os caminhos (não os conselhos) são muitos, mergulho, desapego, renascimento, como A EXTRADIORNÁRIA JORNADA DE EDWARD TULANE, de Kate DiCamillo (2007).

13 de abril de 2018

o chão é o mapa de tudo

Peter O'Sagae


Um livro sempre começa em outro livro, ponte para a vida e para os sonhos semeados na vida de um autor. Isso posso dizer do universo poético visual de Lúcia Hiratsuka, refazendo seus passos de um desenho para uma confissão, de uma palavra breve a uma novela, dos antigos ideogramas às suas próprias ilustrações, das antigas lendas à própria voz, enfim, de um conjunto de gestos familiares de sua infância à constante reelaboração de um quintal, sob o signo do imaginário...

Aí já não se tem mais a vida, mas a sugestão sobre ela.


O livro CHÃO DE PEIXES (Pequena Zahar, 2018), tão longamente esperado e conhecido em forma de esboços e rascunhos por diversos amigos de Lúcia Hiratsuka, possui uma gestação de muitas estações, paradas e volteios. Podemos anunciar que virá a ser o primeiro livro de poesia da autora, porém desconfio que isso não seja verdade.

extenso chão verde
ouço um mugido ao longe 
eterno domingo 

Abro o livro, ao acaso, para encontrar um haicai. Em outras páginas, a estrutura rígida da tradição poética japonesa se desfaz no acento lento de uma voz que arrasta, que sabe, um graveto pelo quintal de outras combinações de som e imagens. Lúcia sempre quis contar histórias com seus traços e não escapou à fabula: eis, então, um apólogo sobre a exuberância, a cor, a forma, a simplicidade, numa predileção por vários domingos, entre a abóbora e a berinjela.


Mas onde tudo isso começa? Qual o mapa de seus livros?


Mudemos o tom: em outubro de 1997, Lúcia havia terminado de ilustrar o livro Batiyan, vem brincar! do casal Marilda e Guilherme del Campo.


O desenho era ainda bem suportado pelo contorno contínuo, a aquarela que descia sobre o papel em meio a tinta acrílica e pontos opacos de guache. Mas era, na biografia na quarta capa, que Lúcia Hiratsuka começava a traduzir afetivamente suas vivências:
“Meus avós chegaram ao Brasil 70 anos atrás e se instalaram próximo à cidade de Duartina, interior de São Paulo. Nessa região chamada ASAHI, que significa sol da manhã, plantaram café, caqui, laranjas e criaram bicho da seda.

“Eu também nasci e morei lá até os 9 anos. Meu Dityan me ensinava a ler e escrever em japonês e minha Batiyan me ensinava a fazer origamis e contava as lendas do Japão que ela ouviu da Batiyan dela.

“Naquela região ainda não havia luz e quando começava a escurecer, nossas brincadeiras prediletas eram contar estrelas e caçar vagalumes. A minha Batiyan, hoje com 96 anos, ainda vive e fica feliz em ver meus trabalhos, pois ela sempre se lembra do primeiro peixinho que desenhou para mim no chão do terreiro e que me despertou para o desenho.” 
Acredito que aí estejam as primeiras sementes, pista e peixe, germinando no chão. E talvez nem pudesse ser de outra maneira: o primeiro poema do velho/novo livro intitula-se “Quintal” fazendo referência a um tempo mágico, lendário e pessoal, à lua e ao coelho que lá habita fritando bolinhos. Contudo a tradição oriental cede a um imaginário diferente. No lugar de bolinhos de arroz, o eu-lírico de Lúcia aguardaria bolinhos de chuva!!!



A descoberta dos ideogramas e da própria imaginação se apresenta em contraste e complementariedade, acerca dos valores ancestrais japoneses e de sua necessária atualização a um modo brasileiro de ser. Aos filhos e netos de orientais, isto é muito claro: o rosto, a língua, o código, um lugar no passado que não nos pertenceu. Para superar a ambivalência, Lúcia Kyoko, como a personagem de Os livros de Sayuri (2008), requer para si outro modo de reconhecer-se:
“Vou rabiscando no chão do quintal. Uso uma vareta, faço riscos bem grandes, lembrando o que ensinou o professor. Cada jeito de fazer os traços. De cima para baixo, da esquerda para a direita. Traço reto, traço em curva, traço que parece um pingo de chuva. Um bom jeito de estudar, assim, no chão, pena ter que apagar depois. Gosto de olhar para a minha letra. Torta, mas minha [...] Já sabia escrever: casa, pássaro, peixe, manhã, caminho, capim. Depois apagava e riscava de novo.” (pp. 59-60) 
A escrita-desenho revolve não apenas o chão de terra batida. Traz silêncios que falam e “mais rabiscos e rabiscos mil”, persistência em possuir o inefável da criação singela, efêmera, de pouca de extensão. Mas... como não ver que o quintal vira mar?



Sim, o quintal, na obra de Madame Hiratsuka (como brincam os amigos), é um lugar de transposições simbólicas. Entre a casa e as estradas do mundo, o quintal se define como um lugar onde se deseja permanecer e, simultaneamente, que se deve atravessar. Em muitos livros da autora, podemos encontrar sua fixação aos meios móveis: desde a travessia de uma menina, ao modo de Chapeuzinho Vermelho, na narrativa visual Um rio de muitas cores (1999), o outro barco que afetuosamente balança a memória da avó materna Orie (2014), os bisavós barqueiros, caminhos líquidos que alcançam novas paisagens e cidades; por terra, roda, linha de ferro e asfalto: a bicicleta de O guardião da bola (2015), o fusca de A visita (2011), Na janela do trem (2013), O caminhão (2017), este último com a dedicatória: para aqueles que carregam o cheiro da terra e as cores de longe.




Os caminhos todos já estavam desenhados, numa distração numa corrida de caracóis ou no parentesco sem fim das formigas... Sabe o segredo de Drummond? No meio do caminho tinha uma pedra, uma montanha! E ela teve de subir, subir muito alto. Em seguida, descer e descer... O objeto da percepção transfigura-se em um objeto da imaginação.


Assim, as páginas de CHÃO DE PEIXES são quadros de outra memória. Cada abertura apresenta um fotograma em palavras e sumi-ê, o desenho gestual que não admite retoques, expresso tradicionalmente com tinta negra. Nas pinceladas de Lúcia Hiratsuka, no entanto, adaptou-se e absorveu cores. São vinte composições, ou registros, terminando com uma outra sorte de amadurecimento: metalinguagem.


Imagens

Pinturas feitas de instantes,
de chuvas e luas,
entardeceres e noites escuras,
de toques e flores
na memória.

//.
/.
.//

P. S. Com CHÃO DE PEIXES, Lúcia Hiratsuka é a vencedora do Prêmio Sylvia Orthof 2018, concedido pela Biblioteca Nacional à Literatura Infantil (13 de nov. 2018).

Primeiro livro de poesia da autora, este chão é um exemplo de persistência na criação literária: palavras e imagens vieram amadurecendo brandamente, cuidando igualmente ao longo dos anos do tempo de recepção do leitor. Este é o chão do seu quintal, extenso chão de sonhos, sons ouvidos ao longe, dias em festa em suas memórias afetivas... Enfim, o quintal hoje é para todos nós!!!

16 de janeiro de 2018

de volta ao buraco


Com uma pergunta – Para onde vamos? Regina Zilberman descerra o último capítulo de COMO E POR QUE LER A LITERATURA INFANTIL BRASILEIRA (2005) e produz um ânimo de tristeza e insatisfação, ao verificarmos que nem os escritores, nem a crítica talvez possam responder por onde os livros devem caminhar, quando é preciso considerar as dificuldades de criação dos autores que nada mais têm a nos contar... afinal, todas as histórias já foram algum dia recitadas ou escritas! Como construir um personagem sempre presente igual àqueles advindos com a tradição e a repetição de suas tramas? como encontrar um conflito instigante? como dar voz à solução do enredo e da própria redação? Enfim, como libertar a inventividade da mente para o papel?

Partindo de algumas obras dos anos 1980, 90, a professora da UFRGS faz entrar em cena o autor-personagem, evocando o emblemático UM HOMEM NO SOTÃO, retratado por Ricardo Azevedo (1982, reformulado em 2001). Narra-se aí, em terceira pessoa, a desventura de um autor de contos para crianças. Em seu processo, obsessivo, circular, ele esbraveja consigo mesmo. “Chega de inventar histórias que, mesmo sem ler, todos já sabem o que vai acontecer e como vão terminar. Chega de só inventar pessoas e coisas que nem existiram nem poderiam existir.” O que o escritor deseja é ocupar-se de gente de carne e osso como ele... e começa, então, pelo começo que muitos autores se esforçariam por esconder – a teimosia na falta crônica de inspiração.


Zilberman traz à luz outras narrativas que se aventuraram pela intertextualidade, quando o autor contemporâneo enfrenta o fantasma dos personagens da literatura de tradição, em especial contos de fadas, ou já tradicionais, como no caso dos habitantes do sítio de Monteiro Lobato. A intertextualidade, representada de diferentes modos pela paródia, inscreve-se em questões mais amplas de metalinguagem e, nesse aspecto, frente aos leitores, o ser de ficção que é o autor-personagem pode confundir-se com o sujeito empírico, o escritor que é “gente de carne e osso”, pois toma-lhe de empréstimo o nome, a aparência ou seu lugar.


Na literatura portuguesa, é flagrante que assim faz certo Saramago, pouco modesto, em A MAIOR FLOR DO MUNDO, de José Saramago (2001). Lembre-se: o narrador não é o autor empírico, mas é um personagem que, neste mise-en-scène, se desdobra em culpas e desculpas por não possuir doçuras, nem palavras ou talhe para contar histórias às crianças!

Na literatura infantil brasileira, o jogo com os personagens de uma história bem conhecida dentro de uma nova aventura aparece desde o movimento modernista. Já o questionamento sobre as figuras do narrador e do autor-personagem talvez venha de um influxo estruturalista nos estudos literários universitários, pela década de 1970. Essa regressão toda é necessária quando tomo uma publicação como ALICE NO TELHADO, de Nelson Cruz (Edições SM, 2010) e repenso os impasses dos últimos 40 anos, ou mais, na produção destinada a pequenos e jovens leitores.


Ainda que trabalhando como escritor e como ilustrador, Ricardo Azevedo caraminholou a saída dos personagens da cabeça ou da imaginação do autor e, assim, muitos outros igualmente fizeram. Por sua vez, em seu duplo ficcional, Nelson Cruz escreve que
“Certa vez, tarde da noite, quis escrever uma história. Sobre a mesa, várias folhas de papel desafiavam minha intenção. Pela janela aberta entravam os sons dos grilos nas sombras das árvores. O pensamento perambulou por alguns temas e nenhuma ideia me veio à mente. Cansado de tentar escrever, apanhei um pincel e desenhei um círculo no meio de uma folha. E fiquei ali, imaginando se, a partir daquele desenho despretensioso, uma história poderia ter início. Mas nada.”
O que se pode adivinhar é que, em meio ao entorpecimento do cricrilar madrugada afora, o Nelson-personagem ouvirá vozes e não será um sussurro, mas o espichado grito chamando COEEEELHOOOO! Do círculo, vicioso círculo, sairão o Coelho Branco, a menina Alice de cabelos escuros, o pequeno Chapeleiro, o rei, a rainha gorda e três soldados, em uma lengalenga sucessiva que traz os personagens do país das maravilhas correndo em cima de papéis na mesa do escritor-ilustrador. Eles estacam, todos, no limite... de uma ilustração ou de um telhado à borda de uma imensa favela no morro.


Nelson Cruz já havia trabalhado com tamanho contraste entre as realidades das pessoas de ficção e das pessoas de carne e osso, em 2004, com O CASO DO SACI, fazendo dialogar o mano velho Zé Preto, um Gepeto às avessas, com a obra de Carlo Collodi. De seus projetos intertextuais, permanece oportuno para a leitura OS HERDEIROS DO LOBO, tour de force empreendida em 2009, entre narrativa, ritmo, imagens literárias, pintura e os contos da tradição popular.


No livro de 2010, ALICE NO TELHADO, os desenhos revelam um mundo coberto de ocre e pobreza pouco afeito à fantasia, uma favela de parabólicas e tiroteios onde nem os personagens mais cativantes ou absurdos da literatura para crianças ousam entrar. Ali, a infância é outra – e este recado, um tanto pessimista (leitor! insista) nos faz refletir... A saída para Alice é voltar ao buraco traçado pelo pincel do autor, um buraco de onde nem deveria ter saído? Talvez.





2 de janeiro de 2018

inúmeros olhos para ver o mundo

peter O sagae


O sentido de um livro vai além dos fatos que ele vem contar, o sentido de um livro lá está no arrazoado de ideias novas que dá ao leitor para encontrar e colher. Assim é a narrativa de Afonso Cruz a respeito de um pintor que iremos ver, como antecipa o título, debaixo da pia, em algum momento da trama... As hipóteses de leitura a serem talhadas mentalmente talvez me fossem duas: um artista que se esconde dentro de um homem comum, fosse ele um encanador, ou realmente um homem extraordinário, um artista a esconder-se do mundo e doutros homens que lhe acossam o viver.

Claro está que o autor não desejou trabalhar com a dúvida e, na Introdução para O PINTOR DEBAIXO DO LAVA-LOIÇAS (Editorial Caminho, 2011; Peirópolis, 2016), já o leitor é arremessado a um quadro pintado em 1940 por um Josef Sors, cujo olhos intrigantes para a vida abriram-se em 23 de novembro de 1895, filho da engomadeira e do mordomo de um coronel Möller, em uma cidade que ainda não se chamava Bratislava às margens do Danúbio, na Eslováquia. Ora, mais importante que nomes e datas, apontamentos corretos, é a certeza de que “todos os jardins da nossa infância são o jardim do paraíso”. E o quadro que o narrador diz resistir em um pequeno recinto de entrada de uma casa na Figueira da Foz, esse quadro, nós leitores não o vemos nem temos pistas sobre o que nele se deveria ver!


Habilmente escrito no ritmo de capítulos curtos, a obra divide-se em duas partes – O LIVRO DOS OLHOS ACESOS e O LIVRO DOS OLHOS APAGADOS, nomes que fazem referência aos pequenos cadernos de desenho que Josef Sors levava sempre consigo. A primeira parte corresponde a dois terços da obra e pode, estruturalmente, ser dividida em duas seções: 1) aquela que se conta da infância, os anos de instrução ao lado de Wilhelm, a peculiar rotina familiar, a primeira impressão do amor como um infinito fora do alcance das mãos, a imagem de Františka a voar em um balanço no quintal contra o céu, e 2) os acontecimentos posteriores a vinte e oito de junho de mil novecentos e catorze, as muitas paisagens que Josef poderia pintar do mundo. Deste modo, 3) a última parte trata da esperança oculta às escuras, dos olhos que não podem, não querem enxergar os traços de luz nem o sol à sua volta. É uma novela em três atos, três movimentos, muito precisos – e preciosos – porque trata da dialética existencial: estar em si mesmo e sair de si para reencontrar-se.

* * *

Para quem aprecia colecionar frases, Afonso Cruz oferece uma narrativa plena de motivos para refletir – ao brincar com temas, como o amor, a guerra, a cultura, os enfrentamentos pessoais, as desventuras humanas, as palavras – e sorrir o sorriso discreto dos filósofos. Ou dos poetas. Porque já sabemos que a travessia pela primeira metade do século XX fez do homem, qualquer homem de qualquer idade e qualquer lugar, um projeto perante a existência. Sim, é necessário lançar-se ao mundo para conhecer-se. Todo homem é um viajante.


O'ABRE ASPAS 

“Wilhelm reparava que Havel Kopecky costumava acender um cigarro no outro. É como eu com os livros, pensava ele. Há pessoas que julgam que podem ler um livro do princípio ao fim, mas isso não é possível. A última página de um livro é a primeira do próximo, dizia Wilhelm, como os cigarros de Kopecky. Jozef Sors encolhia os ombros. Quando Jozef era mais novo e tinha dificuldade em sentar-se à mesa confortavelmente, a sua mãe punha-lhe uma almofada debaixo do rabo. A Wilhelm, a ama punha um ou dois livros, conforme o número de páginas. Ainda não sabia ler e já pedia concretamente este ou aquele livro para se sentar em cima dele. Mais tarde haveria de dizer que a altura de um homem depende dos livros que lhe serviram de base.” Afonso Cruz: O PINTOR DEBAIXO DO LAVA-LOIÇAS (2011) #afonsocruz Editora Peirópolis (2016, p. 38)