20 de agosto de 2010

Mais histórias à vista


A relação palavra&imagem subsiste em qualquer gênero da literatura para crianças — e está aí Amora, com roteiro de Sonia Junqueira e ilustrações de Flávio Fargas (Positivo, 2009). Além da atribuição unívoca do nome ao personagem estampado na capa, medalhinha no pescoço com a letra A, outro elemento para-textual que é a dedicatória alerta o leitor para o fato de Amora ser uma cadelinha vira-lata. Sapeca e atrevida, ela tem sempre na boca um irresistível pedaço de pano, a barra da calça, o cabo da tomada elétrica, um cinto, uma mochila, um etc. e tal de coisas que pode morder e puxar adiante. E não adianta dar bronca, nem levar Amora para passear na coleira... Essa apresentação da personagem vai até a metade do livro! A narrativa mesmo começa na página 14, quando, um dia, Amora encontra e tira da boca do bueiro uma boneca de pano. Flávio Fargas utilizou alguns sinais gráficos de movimento e molduras da HQ para caracterizar as repetidas ações e mise-en-scène da Amora pretinha.

Elementos da linguagem dos quadrinhos também se fazem presentes na proposição de Rogério Coelho, O gato e a árvore (Positivo, 2009), um livro de imagem que mostra a amizade entre um gato e um corvo cantante. Eles plantam e cuidam de uma árvore, por muitos dias, por muito tempo, até surgir alta e frondosa... A narrativa visual cede lugar ao caráter descritivo das imagens sobre o crescimento da árvore e as mudanças climáticas. [+]

É o desejo de ouvir mais de perto o pássaro cantar que movimenta o livro de imagem narrativo Arapuca, de Daniel Cabral (Positivo, 2009). Em uma remissão ao velho conto de Andersen, o autor transforma o filho de um catador de papel no imperador de seu próprio quarto, enfeitando suas paredes com tudo o que encontra e lhe agrada entre revistas, cartazes e papelões descartados pela sociedade.


Ilustração extraída de [danielgcabral.blogspot.com]

Lá é aqui

Dobras da Leitura não recebeu...


Lá é aqui, de Rogério Borges (Positivo, 2008) — porém, meu baú tem guardado o livro publicado pela Studio Nobel, em 1995, na coleção Olho Verde: Lá é aqui! Vale a pena propor aos leitores a comparação. Trata-se aí de um livro de imagem descritivo em forma de rapsódia, levando-nos a uma viagem por diferentes espaços, da imensidão do cosmos ao infinito microscópico: tudo faz parte do mesmo universo?

História à vista!



De Michele Iacocca, O encontro (Positivo, 2008) é um livro de imagem sem narrativa; sua articulação é um plano-sequência que faz nosso olho-câmara percorrer vários cômodos de uma casa. Desde a capa, uma pergunta: quem o menino irá encontrar? Abrindo o livro, vemos um veloz... Um veloz-não-sei-o-quê que balança as roupas no varal, corre para dentro da cozinha, passa por debaixo da mesa, vai derrubando cadeira, deixa o gato arrepiado, atravessa quartos, quase leva embora o novelo de lã da velha avó e vai, vai, vai, sem que “ninguém” consiga ver ou alcançá-lo. Por fim, escapando à rua, vemos o fujão pulando para os braços abertos do menino.



A caixa de lápis de cor, de Maurício Veneza (Positivo, 2008), é um livro de imagem narrativo a respeito de um pequeno engraxate na lide diária pelas ruas da cidade. Inesperadamente, um cliente descobre estar sem dinheiro para pagar o menino, mas tem uma caixa de lápis de cor no bolso do paletó... Ora, o menino sente-se recompensado e, abrigado em um beco, passa o tempo desenhando — e mergulhando no interior das imagens que criou. Sem um traço crítico frente à realidade, Maurício Veneza projeta o leitor e seu personagem num mundo de faz-de-conta, com casas coloridas e árvores carregadas de fruta, bichinhos amigos e coelhinho branco, revelando um modo de pensar idilicamente a infância.


8 de agosto de 2010

debaixo de um guarda-silêncio

por Peter O’Sagae

Quando meu pai morreu, a minha vida parou. Eu não sabia ainda qual e quanto sentimento estava represado, que nome dar ao que sentia e como diminuir as lágrimas que se derramavam igualmente além desta existência. 2008 foi um ano em que se anteciparam à minha vontade um amigo-adulto que tive na infância chamado Agamenon, o poeta Elias José e meu pai. Eu estava sensível e não sabia.

Porque raramente temos a educação dos pensamentos rumo às verdadeiras questões da vida e sofremos quando uma mudança inevitável se interpõe em nosso caminho. Inevitável, pensamos nós, porque somos pequenos frente a toda forma de silêncio. Contudo, exite um silêncio que deveríamos saber significativamente belo, porque nos transforma. Se não temos mais aqueles instantes de ver e abraçar as pessoas amadas, é porque talvez elas tenham vindo morar em nosso próprio íntimo, sem nos acordarmos por qual estrada vieram.

E é um sentido novo de saudade que se revela igualmente nas páginas do livro O guarda-chuva do vovô, do casal Carolina Moreyra e Odilon Moraes (DCL, 2008). Não é como uma ausência na casa vazia, um retrato na parede parado, uma lembrança de viagem que não se repetirá. Ao contrário, existe uma saudade-saudável que traz felicidade e presença, quando abrimos o sentimento à estrada da gratidão da experiência vivida, nos fazendo achegar outra vez de nossos queridos companheiros.

No livro, debaixo de um guarda-chuva, a neta confessa: “Quando chove as janelas ficam todas fechadas, os jardins ficam molhados e não podemos brincar lá fora. Muita gente não gosta quando chove... mas eu fico feliz, porque sei que o vovô também está.” Este é o seu segredo, conforme leio no meu próprio guarda-silêncio: descobrir e reconhecer, mesmo que pareça tão difícil, a oportunidade maior que a vida nos estende: um reencontro interior e eterno.

Um ótimo domingo em companhia de nossos pais, com um pouco de literatura sugerida.

O homem que amava caixas

por Peter O'Sagae

Por vezes, usamos palavras demais para pensar no silêncio. Por vezes, um silêncio pouco suficiente para falar dos sentimentos. O homem que amava caixas certamente não tinha palavras, ou disposição junto a elas, para dizer ao filho o quanto o amava — mas tinha as caixas para preencher o silêncio que habitava entre eles. Transformadas em castelos e aviões para o menino brincar, as caixas sempre foram uma maneira muito especial de compartilharem um sentimento mútuo. Em silêncio.

Escrito e ilustrado por Stephen Michael King, O homem que amava caixas (Brinque-Book, 1997) é um delicado livro ilustrado, produzido originalmente em 1995.
A imagem visual encarrega-se de transmitir a informação que o código lingüístico estrategicamente silencia — a descrição de cenários, tempo e paisagens, mais a caracterização de personagens, animais, objetos, etc. E a distância entre pai e filho é reforçada pela expressão dos olhos, pelas cores, pela oposição entre espaços fechados e abertos.

Inicialmente, como dentro de sua própria caixa, o homem lê um livro no conforto da sala de casa, sai à varanda, retorna para sua oficina. O filho é todo horizonte, praia, mar e montanha, cabelos ao vento em desalinho e desalento. O tempo preenche caixas de todos os tipos e tamanhos... As novidades construídas pelo pai acabam por trazer o menino para mais perto e dentro de casa, enquanto outros brinquedos permitem voos lá fora, no alto e imenso céu. Ambos sabem que não é preciso dar ouvidos ao estranhamento dos outros, porque nem todos os sentimentos necessitam ser verbalizados.

A caixa do menino

por Peter O'Sagae

A trilha vai até o asfalto, depois do asfalto é o mato. O pai de João vai abrindo caminho, facão na mão, e o menino segue os passos do pai, caixa debaixo do braço. Feliz. Ali tem tudo o que é preciso para sentir-se preparado: apito, revólver de plástico, mamona, estilingue, canivete enferrujado que o avô não queria mais... Ora, se aparece tamanduá ou gambá, tá feito porque o menino está muito bem protegido.

Mas, bem pra lá, depois que João viu casa de cupim fazendo da terra um tabuleiro imenso, viu vaca e boi vigiando o pasto, viu formigas numa fila levando folhas cortadas, o que foi o que aconteceu? Um bode:
o pai correu para um lado, João para outro — e tropeçou e caiu dentro de um buracão. João tem medo? Em um momento, não — e tchum, acerta mamona na cara do bicho que foge, béééééé já vai pra longe... De repente, o menino sente-se só.

De Márcia Batista, A caixa do menino (Scipione, 1988). Na trilha do conto, a autora segue de perto a forma breve de narrar e ampliar afetos — homem e filho num caminho só, um dedão machucado, o menino nas costas do pai, caixa sempre debaixo do braço. O texto conquistou o júri do Prêmio Bienal Nestlé de Literatura Brasileira 1988 e, ainda hoje, abre um horizonte próprio de sugestões com sabor de vitória, confiança mútua e promessa de outras aventuras. Apesar da aparente escassez de recursos para atrair o olhar do leitor, é preciso reconhecer que o ilustrador José Carlos Martinez tirou bom proveito de retículas, porcentagens e misturas entre duas cores, produzindo variedade de tons entre o azul e ocre. Da mesma maneira, vale conferir a simplicidade de um projeto gráfico inteligente e interessante, abrindo balanço e diálogo entre as páginas, a ilustração e a mancha do texto verbal.

6 de agosto de 2010

uma prosa com almas vivas

por Peter O'Sagae


Sabe conversa de mineiro? Tem sempre uma história que a gente não põe muita fé, não, mas fica de ouvido atento para ver aonde é que vai dar. Pois esse livro é feito ânsim: um tirico de prosa e literatura com o André, um menino-escritor muito maneiro que, nas férias e nos feriados, deixa o cinza de Belo Horizonte para se enfiar vereda adentro no sítio de seus avós — além da cidade de Lavras, a caminho de uma cidadezinha chamada Ijaci, ambas no Sul de Minas [...] entra-se por uma estradinha de terra que ninguém vê — nem o carteiro, podem acreditar —, a qual é chamada Estrada Sitiotopia. Não há placa, nem setas, nem numeração para lugar algum e, se por acaso um andarilho se aventurasse por lá, andaria em círculos até dar novamente de caras com a estrada principal, a asfaltada.

Pois, nesse lugar, meio distante, meio perto, André ouve histórias em volta do fogão de lenha, por uma madrugada toda na companhia de seu avô — e anota as principais passagens e informações para escrever, depois, aqueles mesmos causos. De Lobisomem. Da Mãe d'Água. Do Saci Pererê. E outras mais: como você nunca ouviu! Imagine tirar os olhos de um gato preto e colocá-los dentro de um ovo de galinha preta, guardando-o no estrume de cavalo, para o prazo de um mês, nascer um pequeno, mágico e traiçoeiro d’um coisa ruim... Ou então, ouvir passar (e rezar para que passe bem depressa) a procissão dos mortos à porta de sua casa? E, sabe, uma vez houve uma mulher que abriu a janela... Coisas deste e do outro mundo vivem em uma zona de quase prelúdio, entre a claridade e a escuridão, e já não são raras as oportunidades em que se encontram.

Adriano Messias inventou André e tomou partido das lendas, um gênero da literatura da tradição oral em que ocorre a intrusão de elementos sobrenaturais no cotidiano ordinário das gentes, criando assim uma espécie de twilight zone brasileira. Seu texto é galopante — ou, melhor dizendo e para ficar no clima —, vem no verdadeiro martelo do Infame e outros assombramentos. Contrariamente a que vem sendo feito desse material narrativo, congelado no tempo como contos de mentiroso ou curiosidade folclórica, Adriano Messias promove um trânsito instigante entre a presença do contador de causos que tudo viu e os suportes da linguagem escrita, sejam impressos, sejam virtuais. Pois André ouve e lê tudo com demasiado interesse e atenção. Eta bichim!

Mesmo que você diga que essas histórias são manjadas e não assustam mais vivalma, fica o convite para a leitura, de preferência numa longa e fria madrugada com seus estranhos visitantes. E pode, sim, discretamente persignar-se. Dominus vobiscum.


* Histórias mal-assombradas EM VOLTA DO FOGÃO DE LENHA,
de Adriano Messias, il. Márcia Széliga (Biruta, 2004) 92 p.

Bá Maria, com afeto e magia

por Peter O'Sagae


André novamente segue viagem para o sítio-que-ninguém-acha para mais e mais escutanças, ao lado da negra querida, a Bá Maria, amiga com mais de cem anos que nunca se casou e sempre adotou a criançada das redondezas como seus filhos. É com ela que vamos conhecer outra versão da história do moleque-boneco de cera, aquele mesmo que uma velha fez para vingar-se do macaco que comeu todas as suas bananas. Mas esta velha e boa história é apenas um aperitivo para forrar seu estômago para outros causos...

Tem armações do temível Quibungo, o ferrão quebrado do Caipora, a velha que não morria, o homem que queria ganhar sempre no jogo do facão e, por isso, fez um pacto com o Tinhoso — mais tantas outras histórias Bá Maria vai tirando do passado e filtra para os ouvidos do zinfio. Curioso, André envereda-se pela tênue fronteira das lendas, onde se equilibram imaginação e relíquias históricas.

No entanto, o livro todo não é dedicado à felicidade de sentir medo e tremer, desconfiando de que algum malefício espreita no breu da noite que silva e sibila... Espreguiço-me, mas não estou agora com sono. Peço a minha velha amiga para falar um pouco da escravidão para sairmos também da terra das assombrações por alguns momentos. Há tempos ela quis me fazer conhecer um pouco sobre os orixás, mas eu não tinha tido tempo em outras férias. E também era muito moleque, acho que não entenderia com a profundidade que só ela sabe ensinar as coisas.

Adriano Messias reverencia a ancestralidade yorubá — em um capítulo apenas. Embora venha com uma reduzida enumeração dos nomes e principais atributos dos infinitos orixás, o autor não reduziu o respeito à alma de tudo o que é habitado por mistérios. Além do mais, não é Adriano, mas o personagem André quem deixa a promessa de escrever um livro sobre os casos dos orixás... Quanto ao texto deste segundo volume de assombramentos, o autor “empírico” (isto é, o próprio Adriano) vai dispensando os travessões de falas e o que cai, nas mãos do leitor, é como um feature composto por diversas vozes e registros que funde as antigas narrativas às emoções de André, a narração aos comentários explicativos, os diferentes narradores — sem jamais perder o fio da história.

Pois bem: André sabe que os dias serão sempre curtos e, disposto a estender a noite, atravessa o terreiro da casa da avó até a casinha da negra; os braços cruzados sobre o peito, mas cheio de coragem para ingressar em um mundo fascinante. Ao longe, pios e assobios, um bode (será bode?) bééérra... e ainda ameaça tempestade. Eparrêi, Iansã!

* De Adriano Messias,
Histórias mal-assombradas DO TEMPO DA ESCRAVIDÃO,
 il. Andréa Corbani (Biruta, 2005) 116 p.

até qualquer dia, dia de índio

por Peter O'Sagae


Quando retornava de sua última temporada na casa da avó, André conheceu Tucuxi. Prometeu voltar e voltou para conhecer as narrativas fantásticas que o índio, um dia muito distante, trouxe do norte. Remanescente de um grupo extinto, acumulou encantos, mitos e histórias das muitas tribos por onde passou, mais outras que viveu destino afora. E André, às vezes às voltas com seu silêncio de adolescente, leituras e fantasmas, começa o relato com uma vontade de ser índio, fugir dessas complicações da cidade grande. Pelo menos por algum tempo, ele quer mesmo caminhar pela mata...

Agora estão os dois ali, no afunilado do Rio Grande. Tucuxi é um homem carrancudo, não toca, nem abraça ninguém, mas sua maneira de olhar é muito mais que ver: é entender. As águas são testemunhas das dores e amores humanos, das entradas e saídas dos seres mágicos. E, no enrodilhado que molha, visagens surgem: a face sedutora de Iara, os olhos encovados da Ipupiara, pios de curupira e de inhambu se confundem, veja a vingança de anhangá, vira-porco, capelobo comedor de cérebro...

No terceiro livro da série, as histórias são tiradas durante o dia — dado o ofício de pescador do velho índio que, além de sábio, tem pegada de pajé. Adriano Messias investiu os personagens e o próprio texto com um sabor mais enciclopédico: « Certos índios, quando bem velhos, se transformam em mapinguaris e passam a viver sozinhos no secreto das florestas. São vistos por alguns como tendo quase dois metros de altura, muitos fortes e com peles como as do jacaré, só que mais grossas. Suas mãos, pés e dentes são grandes. Tem gente também que fala que um mapinguari é mais parecido com um grande macaco, tendo um olho no meio da testa e uma bocarra, que vai até a barriga. Outros ainda dizem que... »

Tucuxi não é como o bom selvagem, trocando histórias por uma ninhada de badulaques, muito menos sua imagem resulta domesticada por uma imaginação mediana — o personagem incorpora tradição oral, superstições e desmitificação, mais alguns conhecimentos linguístico; André também aparece mais enfronhado com leituras diversas, oportunamente comentando as narrativas que transcreve — e talvez não seja à toa, pense você, que seu nome completo seja mesmo André Villas Boas.

Dos encontros à beira do rio — que, logo desaparecerá sob a cheia de uma represa em construção, emerge o entendimento de que o mundo evolui enovelado por simultaneidades históricas, ou extraordinárias, cheio de assombramentos do presente a transformar o passado. E Tucuxi há de continuar seu próprio passo e caminho. Adeus, Anrati!

*
Histórias mal-assombradas de UM ESPÍRITO DA FLORESTA,
mais um livro de Adriano Messias,
il. Andréa Corbani (Biruta, 2006) 120 p.
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