20 de dezembro de 2021

américa afora

dobrasdaleitura unpacking 2 | Abrir o envelope que vem da @editoraincompleta é uma aula de boas ideias e ações: a entrega na cidade de São Paulo contou com a parceria da Señoritas Courier, um coletivo de mulheres e LGBTQIA+ que faz cuidadosamente o delivery indo e vindo de bicicleta @senoritas_courier; e também vale prestar atenção ao simples-engenhoso aparato de papelão para acomodar a revista e um pôster tamanho A3

Na capa, a PUNÃDO 7 exibe o vermelho de Heloisa Hariadne, anunciando um verão de leituras na companhia de doze autoras latino-americanas e caribenhas contemporâneas. Esta edição se estende por mais de 200 páginas, trazendo pela primeira vez escritoras de Guadalupe, Guatemala, Honduras, Jamaica e Paraguai. Os textos de ficção são acompanhados por uma biografia e uma entrevista, tendo sido reunidos sob o tema INSTINTO, numa promessa de cavoucar necessidades e ímpetos femininos/humanos após um período tão intenso em que nos mantivemos atentos (e permanecemos ainda) sobre nossos corpos.

No cartaz, a ilustração de Caio Zero evoca o mapa invertido de Torres-García e o poema de Isabella Benassi — Jurema preta (2021), cujo simbolismo deita raízes na rica antropologia da bebida psicotrópica em rituais indígenas, das comunidades quilombolas, resistência, espinheiro, proteção, esperança, autenticidade brasileira, uma colheita que se espalha pelo futuro. A editora Incompleta enviou também o jornal MALUNGO, produzido por Matheus de Souza Viana, dedicado à presença do design no combate ao preconceito racial negro.

Enfim, a revista PUÑADO 7 contou com financiamento coletivo para sua produção e já se encontra à venda. Enquanto não a leio, espio aleatoriamente algumas frases. Vejo-me na escritora jamaicana Opal Palmar Adisa: “Eu escrevo e faço crítica literária, e a jornada entre esses dois terrenos é curta e familiar, como rolar de um lado da cama para o outro.”

19 de dezembro de 2021

desenha-me um @encostinho?

@dobradaleitura | Essa história começou lá em Goiânia, sabe? Fevereiro de 2019, durante a feira e-cêntrica. Márcio Sno chegava junto, com um pequeno caderno capa preta, e pedia: “Desenha-me um carneiro!” Nããão, errei a narrativa... Mas foi mais ou menos assim, ele estendia o sorriso e saía pedindo a artistas gráficos, quadrinistas e gente não-desenhista para retratar seu personagem.

De evento em evento, surgiram AS VÁRIAS FACES DO ENCOSTINHO que ora ganha uma aureola, ora veste moletom e tênis, come peixe, tem ares de príncipe, menino, bicho de pelúcia, nerd, malvado, bonzinho, nunca passou calor numa @feiramiolos, participando mais uma vez neste domingo às 12h, no perfil @marciosno

E então a DRAG FISH abriu algumas páginas deste zine: encontramos nossas lembranças e formas de encarar o diabinho gente boa que está completando 5 ANOS! Receba o abraço dos seus vizinhos #2noTelhado @suryara @luiz_sposito

Feliz Aniversário, @encostinho!

11 de dezembro de 2021

tem quindim na estante!!!

chegou a nova mascote quindim

dobrasdaleitura | No começo da semana, chegou encomenda do Clube de Leitura Quindim @clubequindim — o Kraft com desenhos de Graça Lima @gramulima já seria por si só uma novidade: veja a capivara leitora, mãe e viajante!

Encontro o Diário do Leitor com a big capivara da ilustradora Anabella López @anabella_sol_lopez Esse caderno funciona com um álbum de atividades e também brinca de ser flip-book: nas páginas internas, é Renato Moriconi @renatomoriconi quem nos faz ver outra capivara fazendo malabares com seis livros... E então ela saltou das dobras do pacote!

Tudo junto de uma vez: o livro de Ricardo Philippsen e Ana Matsusaki, lançamento exclusivo, o mapa de leitura, mais um guia do assinante e um livreto com “A história de uma capivara chamada Quindim”, apresentando, em linguagem afetiva, a identidade múltipla da nova mascote.

Agradeço à Renata Nakano, idealizadora e diretora-geral do clube @renatanakano, pelo mimo e pelos sucessivos convites para integrar sua casa de leituras. Há mais de ano e meio, vim colaborando junto à equipe de resenhistas para o site que estreou neste dezembro, com novas funcionalidades de busca para assinantes e não assinantes conhecerem mais um pouco do universo de literatura infantil e outros livros para crianças. São minhas últimas dobras em 152 comentários para fechar=abrir um ciclo pessoal igualmente novo.

Ah, se eu não ganhasse minha mascote... não ia ter bolo, nem íamos cantar parabéns mais uma e outra vez! Né @dauanavale @lumasopre @umaestreladomar @marinamayfair @xuliagretz ??? Look over there: tem Quindim na estante!!

5 de novembro de 2021

feliz aniversário, @encostinho!

@dobradaleitura | Qual dos CONSELHOS DO ENCOSTINHO você vai seguir? Ao abrir o zine de Márcio Sno, a primeira frase-convite é “Ame o próximo!” Virando a página, com humor, ele emenda: e o anterior também. Talvez seja mesmo difícil não amar esse criador e sua criatura sempre ocupados em projetar o melhor de nossas ações... e às vezes alfinetar aquela pisada na bola. Sempre duvide de uma fofoca... Pesquise antes de questionar algo ou alguém. Pratique o desapego. Ora, desapego? De repente, a gente dá a pinta na contradição, lendo e colecionando seus variados zines.

@dobradaleitura | Faça zines também! Este é o conselho-chave do ENCOSTINHO que leva Márcio Sno a oferecer constantemente oficinas, cursos e tutoriais online (para crianças e marmanjos) como modo de fomentar a cultura da troca de informações e afetos também. Às vezes algo dentro da gente aguarda uma forma de vir à tona, assim estes são curiosos momentos para aprender a perceber uma ideia e pescá-la sem censuras.

Completando 5 ANOS!!!!! o clássico Encostinho Zineiro tem o corpo de feltro vermelho bordado — e aqui aparece junto às minhas experimentações no curso MICRONIZNES, CRIAÇÃO DE MICROPUBLICAÇÕES. O convite era nos apropriarmos dos formatos 3x3cm, o caderno grampeado: Agora não rola, depois eu chamo; o zine sanfonado: Era, o zine chaveiro: O que você não pode esquecer ao conversar com um fascista e o quase impossível nanozine 2x2cm que possui uma linha poética como texto-título-legenda.

@dobradaleitura | O Encostinho é um estado de espírito que percorre a produção de zines, investe o personagem, toma várias faces e facetas. É o sujeito que acalenta, mas também alfineta e... começa a fazer parte dos seus livros, brinquedos de papel, adesivos, pins e vídeos! O Encostinho é essa espécie de guru ou guri que se propõe a dar um start em novos projetos, novas atitudes.

Para finalizar essa série de postagens, quero lembrar que, no Youtube, encontramos a série BRINCANDO DE CRIAR COM MÁRCIO SNO (2018), com sete tutoriais que ensinam o fabrico de estruturas como a cobra de papel, o livro X, o peixe articulado, o microzine e o zine sanfonado.

Também há outros materiais de pesquisa, os bastidores de criação, dicas de leitura, na série MEU ZINE MINHA VIDA (2020).
* siga @marciosno @encostinho

3 de novembro de 2021

tutu-marambá

dobrasdaleitura | Em 22 agosto de 1992, Ricardo Azevedo publicou a primeira versão do bestiário MONSTRENGOS DE NOSSA TERRA, nas páginas centrais da “Folhinha”, suplemento infantil do jornal A Folha de S. Paulo, antes de virar livro (FTD, 1986) e, adiante, recompilado em MEU LIVRO DE FOLCLORE (Ática, 1996 rev. 2011). Apresentava algumas figuras pouco conhecidas, como o Cavalo de Três Pés ou Domingos Pinto Colchão, que podemos encontrar pelas estradas e encruzilhadas; tem Lobisomem que aprecia comer cocô de galinha, tem Homem do Saco e tem Papa-Figo que também rouba crianças, as mentirosas! Tutu-Marambá é certamente o papão brasileiro por excelência, segundo Câmara Cascudo.

“Bicho-tutu, papão assombrador de crianças. Também chamado de tutu-zambeta ou tutu-do-mato. Aparece nas cantigas de ninar. A criança ouve a cantiga, fecha os olhos de medo e dorme.”
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17 de outubro de 2021

o ogro

dobrasdaleitura | Entre OS ANIMAIS FANTÁSTICOS, do poeta José Jorge Letria com ilustrações de André Letria (Peirópolis, 2008), o Ogre europeu aqui passou a ser chamado Ogro, embora ambos os nomes sejam aceitos pelo dicionário da língua portuguesa. Papão de antiga fama e estirpe em inúmeras mitologias, crenças e contos populares, um ogro ora vive num ponto obscuro da floresta, em ilhas distantes, nas montanhas altíssimas, ora vive a agitada vida dos palácios! Transcrevo três quadras do meio do poema, com a boca cheia de dentes esparsos e insetos:
Já me chamaram monstro,
criatura de assombrar,
e disseram que devoro
as crianças ao luar.

Mostram-me nos desenhos
com o olhar mais feroz
que um bicho pode ter
se nos quer deixar sem voz.

Há países, lá do norte,
onde me chamam Papão,
dizendo que eu só morro,
com setas no coração.

15 de outubro de 2021

o papão tem muitos nomes

dobrasdaleitura | O papão tem muitos nomes no livro de Marcus Accioly: GURIATÃ, UM CORDEL PARA MENINO (1979), bicho-monstro, papa-figo, parente de lobisomen e outros mais tão diferentes, porém todos como um só correndo atrás do herói e do leitor pra devorar coisas e gentes, sonhos e infâncias. Com as xilogravuras de José Cavalcanti e Ferreira (Dila) e os ritmos ricos da poesia nordestina, no canto L desta aventura de Sucram para encontrar o amigo-irmão Leunam, damos de ouvido com estas belas rimas abraçadas ABBA que vão se inverter lá no final BAAB, como tem que nossa própria sorte virar, quando esbarramos com o genial Caga-Grosso que deve assim ser desafiado e enfrentado:
Existe um menino
lá dentro do poço,
Bicho Caga-Grosso
você caga-fino,
hoje bate o sino
de cair no chão,
você come amargo
mas eu não o largo
seu Bicho-Papão.

Um menino canta
dentro de um surrão,
conheço a canção
que já se levanta
(ai, que mágoa tanta
no seu coração!)
Seu Bicho-Papão
você hoje estanca
contra a folha branca
deste meu facão.

11 de outubro de 2021

oba, oba, oba

Primeira foto do BB que hoje chegou no Clube de Leitura Quindim 💛 A verdadeira história do bicho-papão que vive em cima do telhado. Bartolo Burtopelo 2.ed. em capa dura #2noTelhado #bartoloburtopelo @clubequindim Foto de Renata Nakano.

14 de setembro de 2021

a cidade sem nome de torres-garcía

Talvez devesse buscar o Uruguai nas enciclopédias ou nos guias turísticos, pegando o jeito e o signo pronto de um país. Talvez. Mas gosto da leitura oblíqua, evitando os símbolos que me asfixiam com ideias rígidas. Prefiro os índices que oferecem pistas ou pontes, andaimes movediços ao redor de algo à minha frente — um jogo entre o aqui e o ali, o que se vê e o que tenta não revelar... Será que o Uruguai existe na literatura, na pintura, na piscadela do olho? Talvez não seja um país exato, é apenas uma invenção de autores irrequietos!

Passeio por A CIDADE SEM NOME DE TORRES-GARCÍA, de Gustavo Piqueira @lote42 (2021), uma monografia palavra-imagem que conduz nossa atenção-observação ao imbricamento da caligrafia e do desenho num livro do artista uruguaio. Para adentrarmos “La ciudad sin nombre” (1941), Piqueira traça rápidas notas sobre o divórcio que a prensa produziria sobre a escrita e a noção de que é um código visual; então, recupera os percursos biográficos do andarilho que foi Joaquín Torres-García; e finalmente vamos nos deparar com algumas páginas que exibem como o autor alinhou e alternou o desenho de pessoas, carros, casas, prédios, letreiros às palavras.

Assim resenhando ou descrevendo, até se pode imaginar o quanto de carta-enigmática Torres-García encerrou em seu trabalho. A linguagem do rébus é uma aparente chave de acesso às invenções do artista que se dedicou ao Abstracionismo, um pouco ao lado de Mondrian e Arp, e as afinidades entre o neoplasticismo europeu e o grafismo dos artefatos pré-colombianos. Torres-García propõe uma sintaxe espacial que acomoda muito bem o moderno e a criança, elementos figurativos, geométricos e perspectivas afetivas planas. A cidade sem nome já me parece de todos os homens, de todas as idades. Montevidéu, Nova Iorque ou São Paulo. Em todas as ruas somos primitivos observadores? Ora, Torres-García também fora professor em uma escola infantil e produziu inúmeros brinquedos de madeira, após o nascimento dos filhos. Ao homem intelectual e prático, é digna e é signo a sua obsessão pela tríade vida-obra-cosmos, ou seja, a gênese de novas formas organizadas. E existirá algo mais belo e infantil do que isso?

9 de setembro de 2021

uns versos felinos e uma citação de pouco visgo

Um livro me leva sempre a outros livros e encontrei nos andaimes da memória do personagem de Mario Benedetti, uns versos felinos de Juan Cunha e uma citação de pouco visgo a Constancio Vigil. Fui às páginas do Gran Diccionario de Autores Latinoamericanos de LIJ (2010), editado em Madrid com a colaboração de estudiosos do lado de cá do oceano. Das origens da literatura infantil no Uruguai, Sylvia Puentes Oyenard dá notícias de um tardio desenvolvimento por transculturação de fontes clássicas, espanholas e francesas, escassas influências negra e ameríndia, o folclore infantil compartilhado com outros povos, um lugar de conforto na ociosa voz do gaúcho improvisador de redondilhas e repetentes, por onde se mesclam baladas e rimances medievais em novos tons.

Porém me inquietou saber da outra literatura, aquela feita em livros. Tropeço numa trova que fala de índios puros (sic) abaixo do cielito, ensinando a rima que não se troca mate por chocolate! Adiante há de sabermos que o clima de lutas pela independência não poderia favorecer a criação de textos para crianças. No entanto, um colega de escola do bravo José Artigas viria a dedicar à sua sobrinha o ditado de fábulas e apólogos em versos, publicados na imprensa pouco a pouco nos idos de 1826. Trata-se de Antonio Larrañaga e quem se interessar poderia estender a pesquisa sobre Petrona Rosende, ambos fundamentalmente imbuídos de visões morais e patrióticas (em todas as literaturas se passou algo assim, não?). Com o dedo no índice onomástico, corro o nome de 63 autores de literatura para crianças no Uruguai. Conheço três? Que nome você poderia me recomendar?

Sigo equilibrando-me nos andaimes do romance de Benedetti. “Javier havia se convertido em um devoto de [Juan] Cunha, ainda que este não tivesse escrito rondas infantis. A poesia especialmente escrita para crianças lhe produzia alergia, ou melhor, um tédio insuportável. Estes autores devem crer que as crianças são idiotas, murmurava, que só entendem os diminutivos. E dá-lhe com o cachorrinho, o gatinho, o lourinho, a menininha, o papaizinho. Juan Cunha não, escrevia sério e sem diminutivos.”

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Un gato por la azotea.
La noche, parda también.
Um gato por el pretil:
Con su sombra, ya eran dos;
Y, cantándole la cola,
Podia passar por três.
Versos de JUAN CUNHA que descobri após conhecer o Javier, personagem de Mario Benedetti no livro ANDAIMES (1996) que li no final de agosto. Digo que, em fevereiro mesmo deste ano, escrevi um poema onde digo: olhe, que mal há / a sombra de um familiar / ali se levantou /... / olhe, não um porém três.

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AUTORES DE LITERATURA PARA CRIANÇAS E JOVENS DO URUGUAI

Adela Marziali, Adolfo Montiel Ballesteros, Aida Marcuse, Alicia Alonso, Álvaro Figueredo, Ana Amalia Clulow, Antonio Soto (Boy), Armando Quintero Laplume, Carmen Posadas, Celestina Andrade de Ramos, Constancio Vigil, Daniel Baldi, Elena Pesce, Eloísa Pérez de Pastorini, Elsa Lira Gaiero, Ernesto Pinto, Esteban Stancov, Federico Correa Pose, Federico Ivanier Barreix, Fernán Silva Valdés, Fernando González, Francisco Espínola, Gabriel Eduardo Aznárez Morelli, Gabriela Armand Ugon, Gastón Figueira, Graciela Burger Fernández, Graciela Genta Horgales, Héctor Balsas, Helen Velando, Horacio Quiroga, Hyalmar Blixen, Ignacio Martínez, Isabel Amorín, Jesualdo Sosa, José María Obaldía Lago, José Pedro Bellán, Jovita de Almeida, Juan Burghi, Juan José Morosoli, Juan Zorrilla de San Martín, Juana de Ibarbourou, Julián Luis Murguía Azpíroz, Julio C. da Rosa, Julio Fernández, Kitita Guerendiaín, Lía Schenck, Luis Ramón Igarzábal, Magadalena Helguera, María Carmen Izcua Barbat de Muñoz, Marissa Arroyal Ordeix, Marita de Tutté, Mauricio Rosencof, Michel Visillac, Otilia Fontanals, Pedro Leandro Ipuche, Raquel Martínez Martínez, Ricardo Alcántara Sgarbi, Roberto Bertolino, Roy Berocay, Serafín José García, Sergio López Suárez, Susana Olaondo e Sylvia Puentes de Oyenard.

8 de setembro de 2021

o acúmulo de certa curiosidade

Lemos por impulso, o que pareceria acaso não é senão o acúmulo de certa curiosidade, como agora, meu avanço de beija-flor rumo ao Uruguai que vem se sobrepondo à mesa de trabalho, ao desktop do computador, e busco na revista PUÑADO @editoraincompleta a escrita feminina na literatura contemporânea mais atual.

Vera Giaconi nasceu em Montevidéu e vive na Argentina, participando da #revistapuñado N.º 3 com o conto “Água gelada” — um precioso thriller de 2011 a respeito de Amanda e as duas filhas pequenas que deliberadamente se isolam no silêncio ruidoso de um canal de notícias na TV e nas conversas num idioma estrangeiro o qual a mãe não domina. História tensa e surpreendente (contudo, aqui me desvio sobre um arranjo de coisas que rapidamente particularizam o cotidiano e a própria personagem, ao mesmo tempo em que mentalmente confiro o que tenho em minha cozinha) —
“Amanda sorriu e olhou ao redor. A mesa estava cheia de vasilhas limpas e empilhadas. Havia formas de alumínio, um saco de confeiteiro, frascos de especiarias, colheres reluzentes. Também havia um medidor e uma fruteira com pêssegos, peras, morangos e cerejas que perfumavam o ar. Sobre a bancada, oito pratos de sobremesa, seis xícaras, o liquidificador, a batedeira, o pote de açúcar, a essência de baunilha, as ramas de canela, o chocolate e o queijo. Em quinze minutos tudo estaria no seu lugar. Em mais quinze minutos tudo começaria de novo: a hora do jantar se aproximava.”
Dentro da #revistapuñado N.º 6-B, encontro um relato de viagem de Gabriela Aguerre, escritora também nascida em Montevidéu que se fez brasileira desde a infância. No inédito “Once upon in a blue moon” (2019), o deslocamento da narradora pelo constante anacoluto das frases e pelo intrincado mapa de Israel onde se pode ter a dupla sensação que atravessamos fronteiras estrangeiras, de cidade em cidade, quanto levar consigo o deserto interior pelo deserto de imagens novas, medos, lugares que não deveríamos estar, outros lugares perdidos no tempo. Afinal, o conforto seria um conto maravilhoso sob uma lua azul? Muito raramente...

1 de setembro de 2021

as dobras de dentro pra fora

dobradaleitura | não é apenas um livro dentro do livro o que vemos na ilustração de Bernardo Carvalho: este telhado é exatamente O CADERNO VERMELHO DA MENINA KARATECA, nas mãos da protagonista deste romance pluridimensional de Ana Pessoa (2012) — posto que o livro é abrigo de suas diferentes emoções e textualidades, com todo o fetiche permitido sobre o objeto: um códice de folhas vincadas ao meio e costuradas ao longo da aresta: espelho da menina, espelho do leitor para si mesmo — nesta rápida série de quatro pequenas postagens quero rever o lugar da imagem, sua metamorfose pela palavra e o humor que o livro de papel impõe, são as dobras de dentro pra fora – I
dobradaleitura | há na história de Ana Pessoa um gato preto de coleira vermelha que desaparece pela vizinhança: muito antes que se conte onde N o encontrará, Bernardo Carvalho irrompe num salto gráfico dentro do livro: o animal, ainda sem participação definida ou definitiva no enredo, aparece caminhando no interior através das páginas e leva o leitor a uma sequência de imagens que não sabemos se ilustram o que se deseja ter e obter, se fazem avançar o tempo do romance ou apontam uma realidade sem leitura — o gato não é unicamente preto, seu corpo articula-se numa passagem por duas dimensões a que chamamos verso e o outro lado da página — são as dobras de dentro pra fora – II
dobradaleitura | gosto da ideia de que uma imagem nunca mente, uma vez que ela não pode(ria) mostrar o que ela não é, mas apenas o que é — e Bernardo Carvalho retratou aqui um caso óbvio: a verdadeira página de rosto para o romance de Ana Pessoa: página com rosto que deixa atrás, no verso, a orelha e a massa do cabelo, o contorno de um ombro, cuidadosamente tirando proveito do vértice do códice para alinhar o pescoço — e eu, que lancei mão do anagrama imagens/enigmas (2008), muito desejo afagar o ROSTO DA PÁGINA, por onde humor é tudo: o destino do que irei ler na bola da goma de mascar, feito um fotograma de filme de Kieślowski — são as dobras de dentro pra fora – III
enfim, aqui o último comentário à margem de O CADERNO VERMELHO DA MENINA KARATECA, de Ana Pessoa e Bernardo Carvalho (2012) — todo texto que tomamos verbalmente deveria corresponder a uma imagem de si mesmo e não seria à toa que o tema dos gêneros textuais trabalhem muito com o conceito de espelho, de tamanha sorte que a literatura é um fantasma: o fim de qualquer caderno é transformar-se em livro e imagine, pois, que isto tudo não é um mero diário nem novela: com que assombro a narrativa andará adiante e adiante, apresentando uma discussão sobre o significado da morte do autor, por revolta dos personagens — são as dobras de dentro pra fora – IV

30 de agosto de 2021

um puzzle de ficção por uma estrutura móvel

Quem ou quando me sopraram o nome de Mario Benedetti, não lembro, demorei tempo demais para conhecer um livro de sua rica bibliografia de contos, novelas, poesia e ensaios... Começo a conhecê-lo pelo último romance que o autor define como um puzzle de ficção que se faz habilmente por uma estrutura móvel, em torno de uma construção ou um monumento ou uma prisão que é a memória contra a amnésia com que nos felicitam certas democracias... Queria ter empreendido uma viagem a um lugar da literatura uruguaia como quem busca conhecer seus vizinhos, porém, através de ANDAIMES (1996) trad. Mario Damato (Mundaréu, 2017), a companhia de Javier, o personagem que retorna do exílio espanhol, deu a me incomodar, naquele sentido de estranhamento ao descortinar que o lugar longínquo, o lugar desconhecido é o país dentro de nós mesmos.

Javier me compreende como a um jovem de 19 anos, leva-me de volta a 1995, quando me movia e acreditava, deixando-me pensar que as boas coisas estavam reservadas a todos. Vivi eu as desilusões de um desemprego vindo pela puxada de tapete que resvalou pro chão as muitas conversas interessantes no âmbito político e cultural. Aprendemos a conversar com poucas pessoas, depois de tudo, que apenas dialogam à mesma linguagem. O futebol, o cinema de arte e o videoclube, as drogas, o zapping e a Aids, o vazio vagão de um trem, o corpo, o sonho que se toma de um quadro. Vários parágrafos de Benedetti fiz a vermelho como se eu fosse Javier aos 47. “A audição é o sentido da liberdade.”

Naquela década, havíamos passado fronteiras geográficas com a world music, porém as questões capitalistas nos tocavam esmagadoramente (in)visíveis em seus ritmos étnicos e eletrônicos. E um sentimento me integrou a Rocío, ao dizer: “Javier, não se trata de algo tão pessoal como nossa relação, que tomara dure anos, tomara dure para sempre. Mas no futuro não estamos somente você e eu. Abro o jornal, olho a tevê, e me parece estar imóvel, letárgica, em um pedaço de catástrofe. Não posso suportar o olhar dos meninos de Ruanda, de Sarajevo, da Guatemala e menos ainda os da Villa 31 em Buenos Aires ou, aqui mesmo, os de qualquer favela, prestes a serem desalojados (...) Você e eu, o que podemos fazer? Nada. E não me refiro a este país de bruzundanga mas sim ao mundo gigantesco.” Não temos aqui uma resenha do livro. Mario Benedetti não me levou ao Uruguai mas ao mundo de hoje nos rascunhos de 25 ou mais anos atrás.

P. S. O Clube Tatuí de Leitura amanhã, 31 de agosto, às 18h, discutirá o livro de Mario Benedetti, ANDAIMES, traduzido por Mário Damato e publicado pela Mundaréu.

20 de agosto de 2021

a casa da madrinha

dobrasdaleitura | E minhas viagens com Lygia Bojunga durante este inverno terminam onde começam os caminhos para chegarmos até A CASA DA MADRINHA (1978). O livro agora me fez pensar na velocidade da voz e das imagens numa trama que tem lugar quando duas ou mais histórias aí se encontram. Pois aconteceu de Alexandre partir das praias de Copacabana e Ipanema, onde vendia biscoito e sorvete aos domingos, e depois sábado, e depois a semana quase inteira, deixando pra trás a escola e o barraco da família. O menino caminhou, caminhou muito para chegar à metade do caminho — lá encontrou o Pavão que nasceu num outro país, mas deixou-se capturar por homens que apenas faziam explorar sua beleza e forçaram sua matrícula numa escola onde conseguiram filtrar suas ideias, falas e ações. Depois conheceu João das Mil e Uma Namoradas, partiu num navio e tudo foi uma pena só. Chegou ao Rio de Janeiro, encalhou um tempo no zoológico, em escola de samba, em mansão de gente fina: depois ele tava estrada afora.

Alexandre e Pavão se encontraram naquele meio das viagens que inventam ser uma história nova — e juntos montam um espetáculo saltimbanco. Numa apresentação à sombra de uma mangueira, conhecem Vera que está na plateia à espera de viver uma vida verdadeira. Mas o que é uma aventura senão o emaranhado de narrativas, caminhos por água, terra, sol e lamento que fazem cada um ser o seu próprio herói? A casa da madrinha, descobriremos, fora erguida pelas palavras de Augusto, irmão mais velho de Alexandre, mais a escuta ansiosa do menino, o eco maravilhoso de uma ave cheia de penas, a desconfiança de uma menina à espera de viver... uma vida em outro plano da realidade! Tomemos um fio: os nomes desses personagens: fortes, simples, claros, evocando manchetes e odisseias que fazem da arte de narrar a garantia para continuarem e continuarmos existindo por onde os sonhos se mesclam, numa casa de quatro janelas para diferentes paisagens, com uma porta azul, com uma flor amarela no peito, com uma chave dentro... Da voz e das imagens, a narrativa é uma cavalgadura!

12 de agosto de 2021

a bolsa amarela

dobrasdaleitura | Raquel é a mais importante personagem do século XX na literatura brasileira para crianças e jovens, sem dúvida alguma, tornando-se um nome forte e único. Não é apenas uma menina, mas o espírito da própria infância vagando entre as dimensões do cotidiano e da fantasia, com seus estranhamentos diante de uma ordem pré-estabelecida. Nesta obra, escrita em 1976, Raquel deseja descobrir seu jeito, seu caminho, guardando, desde o início da aventura, três vontades: crescer de uma vez, ter nascido menino e escrever. Contudo, para que ninguém veja ou faça pouco de suas vontades, todas as três ela ajeita em uma bolsa amarela, presente de segunda mão de uma tia rica que costuma passar adiante o que não mais lhe convém. E essa bolsa torna-se um esconderijo especial — com acomodações e bolsos para outros personagens que nasceram em histórias que a menina inventou, como Rei, o galo que foge do próprio galinheiro, decidido a ter uma ideia por que lutar, o Terrível que teve o pensamento desumanamente costurado, e mais o Alfinete e uma guarda-chuva que é toda decisão, afeto e invenções de sua própria vida.

Com o recurso de fábulas e alegorias, Lygia Bojunga encena temas importantes para uma vida mais inclusiva e consciente: o cuidado com a criança e sua afirmação num mundo futuro, o cotidiano em família e a escola, o consumismo e a durabilidade das coisas, o autoritarismo e a liberdade de expressão, as questões de gênero, o lugar do feminino e do feminismo, a troca de papéis ou funções na realidade atual, um tecido em constante movimento e transformação. Neste quesito, o clímax da narrativa terá lugar na Casa dos Consertos, onde moram uma menina, um homem, uma mulher e um velho que compartilham das mesmas tarefas diárias, como estudar, cozinhar e consertar objetos, sem qualquer distinção de quem faz o quê... e tudo tão cheio de livros do teto ao chão e tempo organizado. É enfim uma história de liberdade. | Especial para o Clube de Leitura Quindim @clubequindim

5 de agosto de 2021

qual o começo da história?

dobrasdaleitura | Entre a realidade e o sonho de Maria, estende-se uma corda bamba entre os prédios da orla carioca e, noite após noite, a menina sente a necessidade de ir adiante, não importa a altura, buscando o seu próprio equilíbrio. Às vezes, puxando o fim da madrugada um bando de andorinhas segue as costas de Maria — e quem ouve os relatos da menina até mesmo vê essas aves de verão paradas no ar como se fizessem fila detrás dela! Maria tem um arco de flores coloridas e anda na corda como um passeio seguro no calçadão da praia. Então, ela percebe numa vez um outro prédio alto com janela redonda e um andaime perto: estendendo a curiosidade até lá, Maria reencontra o mar sereno e também tumultuado em que se transformou sua vida, ao atravessar um corredor com variadas portas pintadas em cores diferentes, vozes e imagens de seu passado e memórias perdidas.

Qual o começo da história? É onde começa o livro com Maria, na idade de dez anos, indo morar no apartamento de sua ostensiva avó chamada Maria Cecília Mendonça de Melo? Ou o começo da história é uma infância vivida no circo ou, antes de tudo isso, com Márcia e Marcelo se conhecendo? Haverá um sonho que começa e termina dentro de outro sonho? A história de Maria é certamente um filme, com ecos distantes e movimentos arriscados. Houve uma tragédia na corda bamba ou drama mesmo será conviver com quem não conhecemos as intenções?

Tantas perguntas vão se enganchando de um capítulo a outro nesta novela de uma das mais importantes autoras de literatura brasileira para crianças e jovens; este é o quinto título de Lygia Bojunga que escreve vivamente a narração e os diálogos com o sabor espontâneo da fala e do pensamento de seus personagens. O livro foi lançando em 1979, considerado o Ano Internacional da Criança, e nos aproxima do drama de Maria — uma menina trancada em seu próprio mundo interior, numa condição médica que mais modernamente tem sido conhecida como a Síndrome da Resignação: após um acontecimento terrível em sua vida, a criança apresenta sinais de apatia em diferentes graus de silêncio, imobilidade, desinteresse em alimentar-se e cuidar de si mesma. Contudo, o texto de La Bojunga possui delicadezas, juntamente a outros temas de ordem social e existencial, numa elegância entre a forma, a metonímia e a metáfora. Assim, algumas surpresas escondem-se nas suas frases e outras escolhas. A avó é então lida como uma onça irascível, toda vez que aparece com seus quatro nomes repetidos. E há uma cantilena motivada pelos nomes do casal, Márcia, Marcelo, a invocação sobre a vida da menina deles interrompida: o mar ia... no entanto, a vida de Maria voltará a ter fluxo, sentido, novas portas no vaivém dos espaços futuros | Especial para o Clube de Leitura Quindim @clubequindim

1 de agosto de 2021

um porco que vira porto

dobrasdaleitura | Nas últimas semanas aconteceu uma dose de sincronicidade entre propósitos de leitura em torno dos livros da Casa Lygia Bojunga, assim que se deu o término do curso Escrever para Crianças na @salatatui e fui retomando uma colaboração para o @clubequindim — dois para lá, dois pra cá, retomando quatro dos cinco primeiros títulos da autora. E a gente começa a ter algumas ideias abotoadas com lembranças e sugestões...
Por exemplo, ANGÉLICA (1975) é uma história de animais em diálogo com a tradição das fábulas e com um Brasil que ainda não concluiu as mudanças que tantas e tantas vezes sonhou. Na trama, há um porco que troca uma letra do nome para virar Porto e um elefante velho e sozinho cujo nome é Canarinho, ambos às voltas com a falta danada de emprego e inventando dias melhores pra todo mundo, afinal ninguém merece perder um pedaço de si mesmo (como fez o Jota), nem ninguém (como temos feito, ainda) para poder sobreviver. Do jogo literário, me encanta o encaixe de haver uma peça de teatro chamada ANGÉLICA que os personagens escrevem e encenam dentro do romance que se chama ANGÉLICA, história que abre e esconde outra história, e ocorre parecer estranho não ter lido até hoje uma comparação da obra de Lygia Bojunga com o musical de Sergio Bardotti e Luiz Enríquez Bacalov, OS SALTIMBANCOS que Chico Buarque traduziu em 1977. E, neste um ano e tralalá em que me ocupei a pensar os gêneros narrativos que me nutrem durante o isolamento social, recorto falas da página 86 que não devem ficar caladas:
ANGÉLICA — Mas se a gente sabe que é mentira, como é que a gente vive espalhando essa ideia? Como é que a gente tem até bandeira bordada com cegonha carregando bebê?

LUTERO — Porque é por causa dessa mentira que a gente vive bem, que a gente ganha presente, que todo mundo nos respeita, que...

ANGÉLICA — Mas se a gente sabe que é mentira, a gente não pode passar a mentira pros outros! A gente tem que parar e dizer: é mentira! essa ideia não vale!

LUTERO — Ah, pera lá, Angélica, e como é que a gente fica?

29 de julho de 2021

um abraço passo a passo

dobrasdaleitura | Fazer coincidir os passos do menino com o espaço da leitura é a artimanha deste livro para crianças bem pequenas. UM ABRAÇO PASSO A PASSO, de Tino Feitas e Jana Glatt (2016), é uma parlenda, uma mnemonia que apresenta as noções de quantidade dos números, a comparação entre o esforço de andar e o movimento do animais, as relações parentesco que despertam a graça e a segurança de ir adiante. Um passo de formiga, dois passos de gato, três passos de rã e a hora de retrair o corpo, saltar para colocar-se sobre os dois pés... e vai lá patati pata acolá o balanço inseguro dos passos de um pato! São escolhas algo sutis que vão dispondo a leitura numa visão ingênua, num ritmo brincalhão. Também é enfim um livro de instruções, um passo a passo para ler e caminhar... e conquistada a confiança, o que o menino vai querer?

3 de abril de 2021

um pequeno novelo de amores

Assim escreve Gabriel García Márquez: o tênue resplendor de abril iluminou o ambiente meticuloso da sala que mais parecia a vitrine de um antiquário. Um jovem vendedor de sepulturas acaba de entrar na casa de María dos Prazeres que ela mesma o chamou... ela, essa mulata brasileira e esbelta que fez a vida numa secreta Barcelona e, já anciana, gargalhada de granizo, tivera um sonho e dá início a preparar suas despedidas. Meticulosamente como a casa, María organiza a última moradia. Com um passo certo, como cada coisa pertencendo a seu lugar natural...
MARÍA DOS PRAZERES faz parte da coletânea DOZE CONTOS PEREGRINOS (1992) e transformou-se num livro ilustrado por Carme Solé Vendrell (1999), traduzido por Eric Nepomuceno (Record, 2001).

Na memória da personagem, há um horror muito antigo do cemitério de Manaus sob os aguaceiros de outubro, agora quer ser enterrada deitada, em lugar alto e seco... No cemitério do Monte Montijuich, onde, à entrada, estavam os túmulos de três anarquistas, cujas lápides sem nome amanheciam, não tão misteriosamente assim, com nomes escritos a giz, tinta ou batom. Contudo, logo os vigias apagavam os nomes... A trama de María dos Prazeres é um pequeno novelo de amores e um vago temor, ao longo de três anos, sob o regime fascista espanhol, até que um surpreendente acontecimento sobrevém à sua casa tão mergulhada em escuridões.

2 de abril de 2021

ainda floresce

Já havia resenhado este livro, quase doze anos atrás... O MENINO QUE FLORESCIA, de Jen Wojtowicz e Steve Adams (Edições SM, 2007) conta a história de Vicente Calaveira que mora no alto de uma montanha, lá, bem pra lá de uma floresta de árvores centenárias. Sua família era um estranho clã de exóticos talentos e, na escola, ninguém se dava ao trabalho da mínima conversa com ele... Até que chega Angelina. Todos se assanham a rodeá-la, principalmente às vésperas do baile, mas Angelina del Valle mantém discreta atenção ao menino com seus livros, no canto mais silencioso da sala.

Neste conto de figuras mágicas que parecem saídas do gótico mundo das fadas, sabemos que, em noites de lua cheia, flores crescem pelo corpo de Vicente, no entanto o menino não se importa e sua mãe, delicadamente, podava as flores pela manhã, antes de ir para escola. Com lirismo e humor, a escritora nova-iorquina Jen Wojtowicz celebra o respeito às diferenças e à amizade, a fim de diluir equívocos e mexericos. O ilustrador canadense Steve Adams evoca igualmente motivos populares através de suas tintas acrílicas sobre madeira, dando às imagens uma lenhosa textura, mesclando o romantismo ao expressionismo com toques e ares de Magritte, onde predominam a vibração das cores, uma perspectiva psicológica, afetos de proporções e revelações inesperadas... E qual o talento secreto de Angelina? Depois do baile, você descobrirá!!

Leia a resenha completa feita anteriormente >>
Quando a vida floresce de outro modo

30 de março de 2021

em asas de algodão

Às vezes, palavras como fantasia, imaginação ou devaneio não parecem dar conta da descrição de uma literatura para crianças que escape das fórmulas românticas. Nem mesmo as chaves de leitura de uma psicologia fácil me auxiliam aqui... O livro de Marilda Castanha: EM ASAS DE ALGODÃO (Edições SM, 2015) nos convida a deixar para trás os comentários adornados e manhosos ao gosto do século XIX.

Ainda que venha pesar a tríplice leveza dos símbolos oníricos, da simbologia dos alquimistas e do simbolismo no seio da literatura, talvez seja possível falar aí a respeito de um realismo metafísico ou existencial. A personagem da narrativa vestida com seu vermelho próprio e vibrante está presa na dor e na cor cinza de sua casa interior. De um quadro, se desprende uma nuvem que será sempre passageira, com sua forma instável e força invisível de água-e-vento a transportar a menina para um novo lugar... Ora, é um conto visual de tristeza e uma janela para alguma presença física de afeto, movimento e esperança. Por entre as imagens, uma voz narrativa percorre em tom de reflexão ou confissão que organiza, em um conhecimento particular, um processo de despedida dos sentimentos amargos a uma liberdade consoladora. Sim, penso então num realismo espiritual.
Um P.S. de Marilda Castanha!

Peter querido, que honra e alegria ter uma leitura, deste livro, tão maravilhosa como esta sua. E você (considerando tanto o texto quanto a imagem) foi exatamente no ponto nevrálgico desta narrativa. Já na fase final do livro não havia nenhum pedacinho de azul. Ou seja, a personagem estava totalmente imersa numa tristeza muito maior. Conto um segredo: tive que voltar nas artes e colocar azul em todas, e assim pensava que esta tristeza seria amenizada e não estaria tão aparente (ou que ia "despistar" a dor de viver da personagem. Mas você, hein? sempre super atento! E este "realismo espiritual"...puxa vida! Obrigada pelo olhar tão generoso! Abraço grande! (Facebook, 30 de mar. 2021)

27 de março de 2021

letras de carvão

E.. chegamos mesmo a alcançar o povoado de Palenque de San Basilio, na Colômbia, com o livro da escritora Irene Vasco e do ilustrador Juan Palomino. Palenque, o primeiro lugar livre para os negros da América, na dobra de dois tempos que admitem o convívio e a conquista da linguagem escrita. LETRAS DE CARVÃO, com tradução de Márcia Leite (Pulo do Gato, 2016), é um conto dentro do conto que se inicia nos dias atuais de letras pulsantes na tela do computador, numa conversa entre mãe e filho: "Gosto tanto de ver você escrevendo seus contos, meu filho. Às vezes eu também escrevo. Sabe, quando eu tinha a sua idade, não sabia ler nem escrever."

Tomamos distância para ler/ouvir uma história que revela quão perto se pode estar das palavras em embalagens, listas da conta na mercearia e cartas de amor que não podem ser decifradas, apenas supondo o seu significado, quando não se domina o código. Através das imagens e do subtexto narrativo do livro, lembramos das implicações da voz na manutenção de sociedades orais e na propagação de novas visões de mundo na leitura em voz alta... Tudo pode mudar individual/coletivamente com letras e acenos de carvão, ou buscar os vários Os nas palavras de uma página como bolhas de sabão no ar.

24 de março de 2021

não derrame o leite!

Um conto ilustrado que segue o contorno das margens do Rio Níger, com sabor de fábula afetiva e ritmo de lengalenga, em muito lembrando a mistura de gêneros narrativos da tradição oral africana. De fato, NÃO DERRAME O LEITE, do escritor burquinabês Stephen Davies e do pintor britânico Christopher Corr (2013), trad. Helena Carone (Pequena Zahar, 2015), inspira-se na voz e nas cores vivas de uma África de grande importância histórica para o abastecimento de caravanas dando origem a diferentes cidades.

De algum modo sentimos, embora o texto não diga, partir de um lugar nas cercanias de Timbuctu, com sua trança de referências árabe, songai e tuaregue. A travessia da menina Penda para levar uma tigela de leite a seu pai é também uma travessia num tempo cultural idealizado e paisagens de distâncias imprecisas, tal a natureza do mundo do conto. Penda vai caminhando do seu povoado, sobe e desce as dunas do deserto, passa em meio às máscaras dançantes, pega carona num barco, avista girafas que lhe parecem extraterrestres na lua, sobe e desce montanhas...

Onde o pai pastoreia suas ovelhas? Será que atravessamos num pé a Guiné, Mali, Níger, Benin e Nigéria, no modo breve e seguro do conto?

22 de março de 2021

pelo rio

Um bonito livro de Vanina Starkoff que se abre duplamente, como uma crônica metafísica e a metáfora do rio que é toda vida, correndo páginas, num desejo ensolarado, fluido, cheio de detalhes, até desaguar em lugares, sentidos e vivências mais amplas.
Basta você procurar algumas imagens na Internet para conferir a estética naïf que a autora argentina utilizou para retratar seus personagens e embarcações. Nessas águas deslizam a Lojinha da Dona Flor, a Escolinha da Felicidade, a Barraca do Giba, pessoas, tarefas, trocas, dizeres em gotas de sabedoria, amizade, namoros... Mesmo não tendo uma história a ser contada, visualmente descobrimos na crônica PELO RIO (Palas Mini, 2014) as pequenas narrativas e possibilidades de encontro através das estações em busca de nosso próprio ritmo.

24 de fevereiro de 2021

andar com bicho-carpinteiro

Valei-me, São Trocadilho!
A vontade de fazer arte é vontade de fazer parte, o que antigamente se dizia a alguém ou alguma criança que andava com bicho-carpinteiro, com o espírito de mover as mãos para fazer e refazer tudo a seu próprio modo. Pois esse tudo, é certo, possui um segredo, um mecanismo invisível que se faz necessário conhecer, através de perguntas e experimentos, reinvenções que a olhos sisudos não passariam de estranhices e reinação...

Com a narração de Gil Veloso, inspirado em objetos ou assemblagens de Guto Lacaz, O MENINO ARTEIRO que aqui se apresenta é menos história do que moda, como quem tenta capturar a própria sombra: o que é visto é mais gostoso revisto!!! O que se pasaa na mente também poderá existir pelo mundão afora, mesmo quando nos querem fazer acreditar que geringonças e poesia são algo inútil na vida. O desafio é saber como persistir no inventivo clima de isolamento. Mas como? Talvez conhecendo o alegre coração das coisas...

O livro, publicado em segunda edição pela Ôzé Editora (2017), fornece uma dupla viagem ao universo da estética da acumulação, através das fotografias da arte de Guto Lacaz e através de palavras que vão se aglutinando para ressignificar o dia-a-dia de um menino frente aos azedumes alheios.

#gutolacaz
#gilveloso
#ozeeditora

23 de fevereiro de 2021

monstro leva eu...

Bem antes dos drones, o ponto de vista aéreo ou planos em 'visão de pássaro' era um recurso empregado por artistas do século XV, quando desejavam ilustrar um mapa de cidades e paisagens, com certa riqueza de detalhes, beleza e informação --- e esta linguagem hoje pode se reconfigurar incansavelmente em livros de imagem e outros textos literários que visem a simultaneidade de ações, o múltiplo e o polêmico...

Pois MONSTROS!, de Alice Hoogstad (2014) publicado pela editora Amelì em 2018, traz essa tradição à luz do dia, em uma história que começa com a magia de um desenho vermelho, uma corda e um coração que se desprendem de uma parede. Logo a menina desenha um alossauro engraçado no chão, e mais outro monstro adiante e mais outro e outros que tomam dos lápis para colorir a cidade toda branca. E aí o conflito se estabelece: muitas pessoas deixam-se mover pelo ritmo colorido, com um sorriso à toa na vida, enquanto outras parecem mesmo não suportar qualquer sorte de inovação. De qual lado você está? Deixa o monstro me levar, monstro leva eu...

22 de fevereiro de 2021

outra vez, outra vez

Um dos aspectos estruturais da narrativa bem pouco explorado, nos estudos e comentários sobre literatura e livros para crianças, ainda é o espaço onde a história acontece, não só como um pano de fundo, um plano ao fundo ou lugar fortuito, mas um actante fantástico. Recorro às ruas de pedras e esquinas irregulares que Angela Lago assentou no livro OUTRA VEZ (1983) a fim de criar uma nova cidade que fosse muitas e ao mesmo tempo nenhuma, uma cidade mineira exclusivamente sua, porque existe no âmbito de sua ficcionalidade.

Nesse lugar imaginário, acercam-se as igrejas de Nossa Senhora do Rosário (Ouro Preto), de São Francisco (São João del Rei), de Nossa Senhora do Ó (Sabará), como suas reminiscências barrocas, na mesma porção de sonho em que se vê o passadiço da Rua da Glória de Diamantina, a Casa da Ópera e a Casa dos Contos, entre telhados, platibandas, bananeiras, coqueiros, jabuticabeiras, céu estrelado... Todo cenário move-se com as personagens, de modo a evidenciar a função do espaço na trama e na leitura, numa visão em plongée: olhar que mergulha nos detalhes e breves narrativas paralelas que acompanham, musicalmente, a linha da história principal. Ficcionalidade e função do espaço, tão importantes!
#angelalago