24 de fevereiro de 2021
andar com bicho-carpinteiro
Com a narração de Gil Veloso, inspirado em objetos ou assemblagens de Guto Lacaz, O MENINO ARTEIRO que aqui se apresenta é menos história do que moda, como quem tenta capturar a própria sombra: o que é visto é mais gostoso revisto!!! O que se pasaa na mente também poderá existir pelo mundão afora, mesmo quando nos querem fazer acreditar que geringonças e poesia são algo inútil na vida. O desafio é saber como persistir no inventivo clima de isolamento. Mas como? Talvez conhecendo o alegre coração das coisas...
O livro, publicado em segunda edição pela Ôzé Editora (2017), fornece uma dupla viagem ao universo da estética da acumulação, através das fotografias da arte de Guto Lacaz e através de palavras que vão se aglutinando para ressignificar o dia-a-dia de um menino frente aos azedumes alheios.
#gutolacaz
#gilveloso
#ozeeditora
23 de fevereiro de 2021
monstro leva eu...
Pois MONSTROS!, de Alice Hoogstad (2014) publicado pela editora Amelì em 2018, traz essa tradição à luz do dia, em uma história que começa com a magia de um desenho vermelho, uma corda e um coração que se desprendem de uma parede. Logo a menina desenha um alossauro engraçado no chão, e mais outro monstro adiante e mais outro e outros que tomam dos lápis para colorir a cidade toda branca. E aí o conflito se estabelece: muitas pessoas deixam-se mover pelo ritmo colorido, com um sorriso à toa na vida, enquanto outras parecem mesmo não suportar qualquer sorte de inovação. De qual lado você está? Deixa o monstro me levar, monstro leva eu...
22 de fevereiro de 2021
outra vez, outra vez
Nesse lugar imaginário, acercam-se as igrejas de Nossa Senhora do Rosário (Ouro Preto), de São Francisco (São João del Rei), de Nossa Senhora do Ó (Sabará), como suas reminiscências barrocas, na mesma porção de sonho em que se vê o passadiço da Rua da Glória de Diamantina, a Casa da Ópera e a Casa dos Contos, entre telhados, platibandas, bananeiras, coqueiros, jabuticabeiras, céu estrelado... Todo cenário move-se com as personagens, de modo a evidenciar a função do espaço na trama e na leitura, numa visão em plongée: olhar que mergulha nos detalhes e breves narrativas paralelas que acompanham, musicalmente, a linha da história principal. Ficcionalidade e função do espaço, tão importantes!
#angelalago
20 de fevereiro de 2021
o lenço branco
Da casa com paredes de tijolos azul-escuros à aldeia na região de Ardeal, na Romênia, um riacho de águas límpidas passará por evocações às colinas da Transilvânia, os cumes dos Cárpatos, às lembranças lendárias e políticas dos antepassados, com rápidas palavras, e a história familiar do narrador, seu trabalho desde os seis, sete anos, a vida simples, dura e boa, as travessuras, o código do lenço branco, mais tarde, a partida sem despedidas, com jeito de fuga, os sentimentos de orgulho e erro, o retorno, o anseio pelo perdão parental...
19 de fevereiro de 2021
um livro pra gente morar
#dobrasdapoesia
18 de fevereiro de 2021
copiando poemas
"Mais uma vez, quando o alvor da aurora surgiu no céu, Seu Ananias começou a percorrer a cidade de casa em casa. Mas não entregava cartas. A cada morador ele contava o quanto tinha aprendido com Dona Sofia e como aquela senhora havia mudado aos poucos a vida da pequena cidade, sem ninguém perceber. Um por um, todos foram tornando consciência do grande presente que haviam recebido.”
#dobradapoesia
17 de fevereiro de 2021
o projeto da poesia
Encontrei o livro meses e meses depois, vindo a ser um guia e um companheiro de viagens rumo às aulas na pedagogia pelo interior catarinense. Tão logo eu voltava pra casa, POESIA FORA DA ESTANTE voltava para dentro da estante a fim de descansar, não pegar pó, nem dar oportunidade pro azar.
"A ideia deste livro surgiu da certeza de que a poesia não tem idade. Aqui vamos encontrar os mais variados poemas, muitos deles não escritos diretamente para crianças. Afinal, a poesia de gente grande pode passar pelo crivo dos pequenos leitores. Versos que mimetizam os sentimentos humanos, através de arranjos de sons, ritmos e imagens, podem mobilizar as crianças, que reconhecem a própria interioridade estampada no achado original de novas formas poéticas. Tal fato acontece devido à equivalência entre os elementos sonoros, imagéticos e estruturais, que convergem para o mesmo eixo de sentido, simulando, em todos os níveis, a idéia que se quer representar. O prazer advém, assim, da familiaridade dos temas percorridos pela literatura e também da descoberta de uma linguagem inusitada, recheada de recursos antes não percebidos. São jogos iterativos e gratuitos, que reorganizam a realidade próxima da infância em esquemas mentais (de entendimento) e corpóreos (de sons e ritmos, a matéria orgânica do poema), fazendo com que o cotidiano possa ser visto e sentido como nunca o fora antes."POESIA FORA DA ESTANTE, org. Vera Aguiar, Simone Assumpção e Sissa Jacoby, foi ilustrado com miniaturas de Laura Castilhos (Projeto, 1995) #dobrasdapoesia
16 de fevereiro de 2021
sonhos que necessitam de um reparo
Domingo eu tava lendo CASA DE CONSERTOS, de Eloí Bocheco @eloibocheco, com os mágicos diálogos da menina Olímpia com diferentes pessoas, país afora, ao telefone. São pessoas sem rostos, mas sonhos que necessitam de um reparo e continuidade, uma vez que as histórias de vida, neste enredo, são do mesmo entremeio e substância de antigos brinquedos a serem resgatados do abandono e da solidão.
Noite, Ninfa, Primo, uma galinha dos ovos de ouro, um trem de brinquedo com uma misteriosa porta emperrada, bonecas e personagens literárias aqui e ali se confundem com versos, autores e o amplo remédio da palavra que conserta o sentido de nossas existências. Livro que relembra outros livros, diferentes abrigos e moradas, recitando poesia na medida de cada dia, fala ou freguês, ilustrado com colagens digitais, por Walther Moreira Santos (Melhoramentos, 2012).
15 de fevereiro de 2021
Maingueneau sur la table de nuit, 3
... sabendo diante de qual gênero está, o público estrutura suas expectativas de acordo com ele. Encontramos aqui a noção de "convenção tácita", aplicada ao exercício da palavra [...] Os gêneros contudo não bastam para definir todos os contratos possíveis da literatura, uma vez que as obras também podem instituir contratos singulares. Com base nisso, podem-se distinguir três tipos de obras: - as que se inscrevem exatamente nos limites de um gênero; - as que brincam com os contratos genéricos (misturando muitos gêneros, submetendo-se a eles de maneira irônica, parodiando-os...); - as que se apresentam fora de qualquer gênero, isto é, pretendem definir um pacto singular. Muitas vezes pensa-se que apenas as obras pertencentes à subliteratura aceitam plenamente as regras de um gênero e que uma obra verdadeira deve se colocar fora de qualquer imposição genérica, ser por si mesma seu próprio gênero. Não é nada disso que acontece... ☆ Trad. Marina Appenzeller (Martins Fontes, 1996) p. 140
#recortadosparapensar
14 de fevereiro de 2021
Maingueneau sur la table de nuit, 2
A trajetória bio/gráfica implica posicionamentos no campo literário, eles próprios inseparáveis de investimentos determinados dos gêneros. Desde a Poética aristotélica, a reflexão sobre literatura gira em torno da problemática dos gêneros. Os parâmetros que intervém normalmente em sua definição são muito heterogêneos: diálogo, romance de aprendizado, soneto, comédia de intriga... O romantismo desenvolveu a idéia de que existiriam Gêneros supremos (o lírico, o épico, o dramático), que se especificariam eles próprios de maneira arborescente em subgêneros. ☆ Trad. Marina Appenzeller (Martins Fontes, 2001) pp. 63-65
#recortadosparapensar
12 de fevereiro de 2021
Maingueneau sur la table de nuit, 1
O autor não é único a poder dizer "eu" num texto. As narrações apresentam continuamente personagens que se expressam por discurso direto, colocando-se como responsáveis por sua enunciação, como "locutores" [...] A personagem passa da categoria de não-pessoa à de "locutor", o discurso direto tendo a virtude de introduzir na enunciação do autor as enunciações de outros sujeitos. Mas não se pode esquecer que essas falas, num nível mais elevado, são de fato colocadas sob a responsabilidade do autor que as cita, da mesma maneira que todos os outros elementos de sua história. Esse fenômeno de encastramento é, aliás, recursivo: a personagem-"locutor" pode por sua vez citar as palavras de uma personagem de sua própria narrativa e assim por diante. A literatura picaresca oferece numerosos exemplos de encaixes narrativos desse género. ☆ Trad. Maria Augusta de Matos (Martins Fontes, 1996) pp. 88-89
#recortadosparapensar
11 de fevereiro de 2021
a respeito da música
“A música deve ser a voz de tudo aquilo que ali está silencioso, sem ter a faculdade de se exprimir, e nós termos a possiblidade de o compreender, — a voz das estrelas, das pedras, das nuvens, das flores, de tudo o que, desde as ervas molhadas até às vias-lácteas, fala muito indefinidamente e com vibrações muito sobrenaturais, para que o nosso êxtase as possa escutar.”
10 de fevereiro de 2021
ainda sobre vizinhos
"Depois de me deparar com estas coisas que desafiam a lógica de todo o universo conhecido, comecei a observar algo mais curioso ainda. Dentro das pessoas --- e isso inclui os vizinhos --- habitam as maiores contradições. Por exemplo: A minha tia gosta muito de pássaros, mas prende-os em gaiolas. É uma pena."
🧡 #quemtemquindimtem
9 de fevereiro de 2021
onde está o zig?
A crônica e as ilustrações se desdobram em duas realidades: o cotidiano objetivo frente a cada porta e o mundo imaginado que se esconde do outro lado. OS VIZINHOS, da israelense Einat Tsarfati (2017), traduzido do hebraico por George Schlesinger (Pequena Zahar, 2019), também é um livro de caça-objetos levando o leitor a encontrar Zig, o porquinho-da-índia bisbilhoteiro dentro de cada apartamento.
🧡 #quemtemquindimtem
8 de fevereiro de 2021
foi assim que
"Foi assim que o príncipe a viu. Metade mulher, metade corça, bebendo no regato. A mulher tão linda. A corça tão ágil. A mulher ele queria amar, a corça ele queria matar. Se chegasse perto será que ela fugia? Mexeu num galho, ela levantou a cabeça ouvindo. Então o príncipe botou a flexa no arco, retesou a corda, atirou bem na pata direita. E quando a corça-mulher dobrou os joelhos tentando arrancar a flexa, ele correu e a segurou, chamando homens e cães.
"Levaram a corça para o castelo. Veio o médico, trataram o ferimento. Puseram a corça num quarto de porta trancada.
"Todos os dias o príncipe ia visitá-la. Só ele tinha a chave. E cada vez se apaixonava mais. Mas corça-mulher só falava a língua da floresta e o príncipe só sabia ouvir a língua do palácio.""
🧡 #quemtemquindimtem
7 de fevereiro de 2021
essa é a minha gatinha
Lendo um conto por dia: ERA UMA VEZ UMA MULHER QUE TENTOU MATAR O BEBÊ DA VIZINHA, de Liudmila Petruchésvskaia (2013), com tradução do russo por Cecília Rosas (Companhia das Letras, 2018) e agora imagine a alegria de ir encontrando a relação da ilustração da capa com uma das histórias e prever o que está por vir...
"A gata emagrecia dia após dia, a pelezinha dela estava grudada, os almoços, jantares e cafés da manhã eram um tormento porque a menina sempre tentava jogar algo no chão para a gata. Elena começou a dar uns tapas na mão dela. Todos gritavam. Punham a gata para fora, mas ela se jogava contra porta.
"Uma vez isso gerou uma cena absolutamente terrível. Com a gata nos braços, a menina chegou à cozinha, onde estavam o avô e a avó. A boca da gata e da menina estavam lambuzadas de alguma coisa.
"— Essa é a minha gatinha — disse a menina, e beijou, talvez não pela primeira vez, a gata no focinho nojento.""
6 de fevereiro de 2021
da flor de vidro
"Da flor de vidro restava somente uma reminiscência amarga. Mas havia a saudade de Marialice, cujos movimentos se insinuavam pelos campos --- às vezes verdes, também cinzentos. O sorriso dela brincava na face tosca das mulheres dos colonos, escorria pelo verniz dos móveis, desprendia-se das paredes alvas do casarão. Acompanhava o trem de ferro que ele via passar, todas as tardes, da sede da fazenda. A máquina soltava fagulhas e o apito gritava: Marialice, Marialice, Marialice. A última nota era angustiante."
5 de fevereiro de 2021
o domínio da flor azul
das imagens e traduções: a arte de Beatriz Martín Vidal não vem ilustrar, em sentido estrito, a narrativa da alemã Gudrun Mebs: BIRGIT. EINE GESCHICHTE VOM STERBEN (1982), no entanto elabora uma leitura no campo da metáfora que evoca o doloroso e invasivo processo do câncer, quanto explicita poeticamente uma história de morte: o domínio da flor azul em suas raízes é um eufemismo para a metástase e, veloz, vemos o afastamento da personagem até a dispersão das pétalas; na tradução de Daniel Bonomo para a editora Pulo do Gato, o título empresta à menina o nome da flor e busca atenuar a certeza da morte, com ÍRIS - UMA DESPEDIDA (2012)
2 de fevereiro de 2021
apenas uma imagem
confesso que às vezes apenas uma imagem consegue atrair minha atenção em todo o livro... é o caso desta ilustração de Jimmy Liao, autor taiwanês, para THE MOON FORGETS (1999) ou A LUA PERDIDA (Edições SM, 2015), uma obra marcada culturalmente pelo índice elevado de suicídios, acredita-se, em decorrência da depressão e outras instabilidades mentais. Eis que a lua esquece. Indiferente aos homens.
1 de fevereiro de 2021
platero y peter
Lá vai uma lembrança, lá vai também um livro emprestado a mim que não devolvi e reencontro tudo pensando em uma palestra, lá vão a passos o Platerinho, uma tradução improvisada e eu, no Capítulo CXXV – A FÁBULA:
“Desde criança, Platero, tive um horror instintivo ao apólogo, como à igreja, à Guarda Civil, aos toureiros e o acordeão. Os pobres animais, à força de falar tolices pela boca dos fabulistas, me pareciam tão odiosos como no silêncio dos armários fedorentos da aula de história natural. Cada palavra que falavam, digo, que falava um homem áspero, amarelo e cheio de catarro, me parecia um olho de vidro, uma asa falsa de arame, um vaso com flores de plástico. Depois, quando vi nos circos de Huelva e de Sevilha animais amestrados, a fábula, que havia deixado para trás, como os planos e os prêmios, no esquecimento do que era a escola, voltou então como um pesadelo desagradável de minha adolescência.
“Homem já, Platero, um fabulista, Jean de La Fontaine, de quem você tanto me ouviu contar e repetir, me reconciliou com os animais falantes; e um verso dele às vezes me soava a verdadeira voz da gralha, da pomba ou da cabra. Porém sempre ficava sem ler a moral, esse rabo seco, essa cinza, essa pena caída no final.
“É claro, Platero, você não é um burro no sentido corriqueiro da palavra, nem segundo a definição do Dicionário da Academia Espanhola. Você é, sim, como eu sei e o compreendo. Você tem sua linguagem e não a minha, como não tenho eu a língua da rosa nem aquela do rouxinol. Portanto, não tema que eu nunca irei, como se pode pensar em meus livros, fazer de você um herói charlatão de uma pequena fábula, misturando sua expressão sonora com a voz de uma raposa ou de um pintassilgo, para depois deduzir, em letras inclinadas, a moral fria e presunçosa do apólogo. Não, Platero...”